terça-feira, 7 de maio de 2019

SE ARREPENDIMENTO MATASSE...





SE ARREPENDIMENTO MATASSE..

Pouquíssimas coisas são tão eficazes em produzir bons sentimentos quanto a sensação de estar certo, de ter procedido corretamente. Já ser enganado, fazer papel de bobo, sentir a consciência com o dedo em riste não é nada agradável.

Após ver as tristes notícias sobre os rumos sombrios que o país está tomando – cortes e mais cortes nos já parcos recursos – fui para a feira, tristíssimo por um lado, mas feliz por não ter parte nisso tudo que está ocorrendo.

Seguia eu tomado por esses sentimentos conflitantes quando um feirante estendeu-me a mão, e disse: Olá, meu amigo! Você é uma pessoa a quem eu posso chamar de meu amigo, não aqueles que estão lá em cima, esses políticos safados e enganadores!

Estranhando a saudação e o gesto, observei e vi que não estava bêbado. Conheço-o há um bom tempo, confio muito nos produtos que me vende. É daquele tipo de homem simples, de pouco estudo, que odeia mentira, que busca honrar os fios do bigode. O gesto inusitado me surpreendeu porque ele em geral se mostra desconfiado; é de poucas palavras e nada expansivo; Tivéramos, além disso, certo estranhamento no último pleito eleitoral. Tacitamente, sem que externássemos qualquer acordo, chegamos ao ponto de evitar tratar do tema em nossos poucos encontros sabáticos. Limitávamo-nos ao mútuo envio de vídeos pelo Messenger e às relações de compra e venda. Nunca nos tratamos com desrespeito. Com diplomacia, mas em vão, busquei abrir seus olhos durante a campanha. A surpresa só não foi maior porque, depois da vitória de seu candidato, vi-o mudado, compartilhando algumas postagens minhas contrárias à Reforma da Previdência

Quando retornei, acrescentou: Eu sou muito mole, professor! Só duas vezes inventei de me envolver com política e fazer campanha: na eleição de Fernando Collor e nessa. Pense num arrependimento grande, meu amigo.

Só ri, respeitosamente, e depois disse alguma coisa para justificar e intensificar sua decepção. Apareceu outro freguês; aproveitei e disse que precisava ir noutra banca; ao voltar, passaria por lá, pra continuarmos a conversa.

Voltei, e ele me apresentou a razão de sua frustrada paixão pelo presidente: Sabe por que decidi votar nele? Por causa daquela frase que ele repetia: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. Eu achava aquela frase bonita e pensava ‘esse é um homem de Deus’. Mas me enganei feio! Ah, miserável mentiroso! Mas ele vai pagar caro! Deus tá vendo o que ele fez, usando a palavra dele com mentira.

Nesse instante, tive outra surpresa: chegou um senhor branco, baixo e gordo, até então desconhecido; perguntou ao vendedor, com ar agitado: Esse é o professor de quem você falava, né? E dirigiu-se a mim: Professor, nós, lá no IFRN, estamos no maior desespero. Bem que o senhor vivia avisando a ele. O coordenador do IF chorou e tudo, disse que não podia fazer nada, infelizmente. Segunda-feira serão demitidos dois funcionários já, e isso é só o começo. Eu trabalho lá há 11 anos, mas pelo jeito também vou ser despedido. Eu sou auxiliar de serviços gerais. Sou pai de família e estou preocupado com meu futuro. Morro de vergonha do voto que dei, fico lá calado, com medo que eles me culpem, pois eu achava que a educação ia melhorar, não piorar desse jeito. Como é que pode mexer num dinheiro que já é pouco, fazer um negócio desses com a gente?

Muito triste, amigos, disse-lhes eu. Países que deram certo como Finlândia, Canadá e Holanda, investiram muito em educação e o resultado é que se tornaram muito prósperos. Nós estamos indo na contramão.

Ao fim de nossa conversa, quando já me dirigia a outra banca, deparo-me com J. Nildo, evangélico. Este passava o dia inteiro e boa parte da noite no Facebook defendendo a candidatura de um mito, em nome de Deus.

Não resisti e disse: Anda calado, sumido das redes sociais... o que é que está acontecendo, amigo?

Resposta: Rapaz... é  muita ocupação. Chego em casa, janto, logo bate o sono e vou dormir.

Eu entendo, disse-lhe. Percebo que tem muita gente passando por isso ultimamente. A gente abusa, né? Facebook já não é mais como antes. Disse-lhe, e fui conversar um pouco com um vendedor mais à frente, também decepcionado. Não confio mais em nenhum desses ladrões. Fiz papel de besta, pode acreditar, professor!

Por último, entrei na barbearia de um amigo, cuja cabeça não consegui fazer durante a campanha - arrependidíssimo por haver apostado todas as fichas numa miragem. Com tanta raiva e vigor se exprimia, que temi pelo cliente de quem tirava a barba. Este não resistiu e, mesmo com a navalha ao pescoço, balançou a cabeça afirmativamente, e disse repetidamente: É verdade.

Completei, então, para mim mesmo, a frase que intitula a crônica:


SE ARREPENDIMENTO MATASSE, MUITOS ELEITORES JÁ TERIAM MORRIDO.

Gilberto Cardoso dos Santos

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