CUÍCA DE SANTO AMARO E OUTRAS COINCIDÊNCIAS
Ontem, no bate papo de rotina, entre poetas do grupo “CORDEL EM DEBATE”, Gilberto Cardoso, um dos participantes, referiu-se a Cuíca de Santo Amaro, com citação do meu nome para que respondesse a sua indagação sobre esse controvertido poeta baiano. Consultei rapidamente os meus alfarrábios, além do que tinha na memória, e emiti algumas opiniões sobre esse folclórico personagem, que perambulou pelas rus da Bahia entre o Estado Novo ao início da Ditadura Militar, 1964.
Cuíca de Santo Amaro, porque era dessa cidade do recôncavo baiano, berço de famosos nomes da cultura da Bahia,retratou,nos seus versos satíricos, a sociedade baiana, em especial a política e os políticos, com mordacidade tamanha, que fez tremer a moralidade pública do cotidiano, onde nada passou despercebido dos seus olhares de lince.
“Ele, O tal Cuíca de Santo Amaro (José Gomes)”, como referia-se, a si mesmo, ao propagandear os seus folhetos pelo centro histórico de Salvador, vestindo-se espalhafatosamente, mas ganhando notoriedade, não só dos curiosos circunstantes, como de gente famosa como Hidelgardes Viana, Jorge Amado, Wilson Lins, Dias Gomes, Odorico Tavares, entre outros, que chamaram atenção para esse jornalista e poeta popular, que, como ninguém, sabia desvendar e divulgar, com a sua infalível técnica da extorsão, fatos e acontecimentos guardados a sete chaves.
Cuíca, embora sem preciosidade na construção dos seus versos, para intitular-se um cordelista, sob as medidas dessa literatura, merece, sim, o reconhecimento de ter sido um poeta do povo, um intérprete dos seus sentimentos, um sagaz jornalista, o divulgador de fatos corriqueiros dos porões políticos e sociais da velha Bahia.
Dito isso, em resumo, sobre o nosso popular “Boca do Inferno”, para relembrar o grande Gregório de Matos, volto-me para um fato por ele descrito em três cordéis. “A mulher que deixou o marido desarmado”, “A vingança do homem de Brotas” e o “Casamento do homem de Brotas”, alusivos a um ocorrido nos idos dos anos quarenta, em um dos bairros mais destacados de Salvador, habitado pela elite, e populares nas suas imediações, que chamou a atenção da mídia, dos jornalistas e espalhou-se além dos limites baianos.
Fato verídico, relatado por Cuíca, sobre uma mulher enciumada, que se vingou do seu marido D. Juan, cortando o seu pescoço com uma navalhada. Cuíca não revela nos seus versos, que fora mesmo o pescoço, mas disfarçando o local, desbocado que era, não sei porque o fez, já que o fato se deu mesmo com a castração do marido em uma fatídica noite. Tanto isso é possível, que o marido sobreviveu e, já refeito, fisicamente, arquitetou uma vingança, por não se conformar com a sua situação de não ser o mesmo “macho” de antes. Cuíca se absteve disso, embora todos soubessem da realidade e comentassem sem reservas, para desespero do indigitado marido.
Aconteceu a vingança em uma das ladeiras conhecidas de Salvador, perto das Sete Portas Portas, com três punhaladas fatais, no momento em que a vítima desdenhara dele ao encontrá-lo na rua.
Prisão, júri, absolvição. Tentou outro casamento, inclusive buscando um implante, com o material vindo dos Estados Unidos, mas que não chegou ao destino em razão de um acidente aéreo. Assim, ele desfez o casamento, para não revelar à sua apaixonada noiva a sua situajávislumbrava até um outro casamento, também desfeito para não revelar a sua castração à sua apaixonada noiva, como cantou nos versos do último cordel.
Aí, entra a minha relação com o fato: uma tia, que ao tempo residia em Salvador, ou lá estava, por alguma razão, não sei porque cargas d’ água, resolveu pedir o filho do casal, em tenra idade, para criá-lo. Tinha uma irmã. O pedido foi aceito pelos familiares sem burocracias, e ela retornou a sua cidade Natal, onde vivi na minha infância, com aquela criança.Já batizado, trouxe o nome e sobrenomes dados pelos pais biológicos.
Criado entre nós, como verdadeiro primo, conviveu com a minha tia até o seu casamento, quando foi obrigado a ir morar com os meus avós paternos. Nessa convivência, ficamos sabendo da sua história, inclusive da existência da irmã, mas ele não se dava conta disso, nem se mostrava constrangido com as nossas eventuais gozações.Porém, cresceu um tanto rebelde, valente, sem muita afeição à Escola, conflitante em muitas vezes com os avós de criação, em regime de pouco afeto e muito rigor,tão comum aos nossos tempos. Contudo, era tido como uma pessoa da família, na convivência com tios e primos, até que se desgarrou mundo à fora, como andarilho, indo e votando, até a sua morte, deixando mulher e filhos, que os conheci e são vivos.
Coisas da vida!
Agora me deparo com os versos de Cuíca, relatando o fato, tal e qual se deu, a menos o detalhe do local da navalhada. Isso bastará para provar que, de alguma forma, tenho conhecimento vivo do famoso caso de Brotas, em Salvador.
Vamos ao primeiro: A mulher que deixou o marido desarmado.
Hoje em dia é perigoso
O vivente se casar
Porque quando a mulher
Começa a ciumar
Aguarda a oportunidade
Para poder se vingar.
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Deu-se na zona de Brotas
Este quadro bem gozado
Que até as crianças
Tem achado engraçado
Pois dentro da Bahia
Tem sido bem comentado
Vamos ao segundo cordel:
A vingança do homem de Brotas
.
Nunca mais mulher de Brotas
Quer decapitar ninguém
Quem tiver seu maridinho
Trate ele muito bem
Não se arvores a valente
Para não morrer também.
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O povo naturalmente
Com certeza está lembrado
Que a mulher de Brotas
Com um ciúme danada
Deixaria o eletricista
À noite decapitado.
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Foi então que o Mendonça
Certo dia disse assim
Eu sei perfeitamente
Que já chegou o meu fim
Pois vivendo sem pescoço
Já não há mulher pra mim
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O Mendonça que descia
Vendo aquela desgraçada
Ao dizer-lhe tantas lérias
A dizer-lhe ...estou vingada
Como um louco desvairado
Deu-lhe cinco punhaladas.
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Vamos ao terceiro: O casamento do homem de Brotas
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Há fatos que transformam-se
Para o bem da humanidade
É como aquele caso
Lá passado na cidade
Em que a mulher de Brotas
Fora para a eternidade.
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Deixara ela o marido
Um rapaz forte e bem moço
Em cima do velho mundo
Por vingança...sem pescoço
Comendo canja de galo
Mas sem descer o caroço.
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O Doutor deve saber
Quero um pescoço mais forte
A mulher levou o meu
Na hora da sua morte
Mande buscar outro urgente
Lá na América do Norte.
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Porém este avião
Que da América partiu
Com o peso do pescoço
A asa esquerda partiu
A cabine pegou fogo
E o motor explodiu.
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Vendo então tudo perdido
Concentrou o pensamento
E depois fez uma carta
Com grande constrangimento
Pedindo a sua amada
Desmanchar o casamento.
Eis aí uma amostra das narrativas do Cuíca. Infelizmente não dá para mandar os textos na totalidade. Divirtam-se.
José Walter Pires
Para o Grupo Cordel em Debate
24.01.2018
José Walter, membro da ABLC
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