No dia 4 de agosto de 1944, numa manhã em
Amsterdam, uma equipe das SD (serviço secreto alemão), entrou à força num
prédio da rua Prinsengracht, seguindo as instruções que lhes foram dadas por
uma voz feminina num telefonema anônimo. Depois de renderem os funcionários,
subiram numa escada, onde, escondido por uma estante, há dois anos funcionava
um esconderijo para oito pessoas: três homens maduros (um dos quais um oficial
reformado do exército alemão que combatera na I Guerra Mundial), duas senhoras,
duas garotas e um rapaz, que receberam voz de prisão e a ordem de entrarem num
caminhão, tendo de assistirem calados os oficiais vasculharem suas coisas à
procura de jóias e objetos de valor, amealhando essas coisas sem pedir licença
e jogando o que não consideravam importante no chão. Depois de algum tempo em
Westerbork, foram enviados para outros campos de concentração e, separados aos
poucos, submetidos a condições subumanas que eliminaram um a um, exceto o
oficial reformado, que, libertado e de volta a Amsterdam, teve de conviver com
o que acontecera aos demais, que incluíam sua esposa e suas filhas. Contudo,
uma de suas colaboradoras naquela época difícil entregou-lhe os diários de sua
caçula, que apanhara da pilha de descartes e guardara sem ler durante meses, e
ao lê-los ele se deu conta de quão talentosa e profunda aquela menina de quinze
anos era, motivo pelo qual decidiu editá-los e publicá-los. Dois anos depois,
“O anexo secreto” foi publicado na Holanda, e aos poucos aquelas histórias
misturadas com tiradas espirituosas e reflexões sobre a vida difundiram-se pelo
mundo, marcando a vida de milhões de pessoas e inspirando adaptações para
rádio, teatro, televisão e cinema, a essa altura com o nome que recebeu quando
começou a ser traduzido para outros idiomas: “O Diário de Anne Frank”. Podem me
chamar de sentimental, mas escrevo essa pequena memória porque acredito que um
aniversário dessa natureza não pode passar despercebido, especialmente num
momento como esse, onde pelo menos dois conflitos regionais fundamentados no
ódio entre vizinhos ameaçam dividir novamente o mundo, provando que
infelizmente muitos ainda sentem necessidade de subjugar aqueles de que
discordam. Precisamos resgatar a obra dessa menina que falou tanto sobre o
desejo de amar e de ser livre, bem como da necessidade das pessoas (inclusive
as consideradas “diferentes”) serem respeitadas e terem paz, mas não pôde dar
uma contribuição ainda maior para o mundo porque foi assassinada num campo de
concentração, somando-se a tantos judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de
Jeová e até padres mortos nesses locais. E para reforçar o meu desejo de que
essa história não se repita, gostaria de transcrever o posfácio que Miep Gies,
a colaboradora que salvou seu diário, escreveu para uma biografia a seu
respeito lançada em 1998, 12 anos antes de sua própria morte: “Nos últimos
cinquenta anos, desde a publicação do diário de Anne Frank, sempre me
perguntaram de onde tirei a coragem para ajudar a família Frank. Esta pergunta,
formulada às vezes com admiração, às vezes de maneira incrédula, sempre me
afetou de forma desagradável. Sim, claro que é preciso coragem para se cumprir
o dever humano; claro que é preciso estar disposto a fazer certos sacrifícios.
Mas isto vale para muitas situações na vida. Portanto, por que, estou sempre me
perguntando, uma pessoa faz uma pergunta dessas? Por que tantas pessoas hesitam
em saber se devem ajudar ou não seus semelhantes? Só comecei a compreender aos
poucos. A maioria das crianças ouve seus pais dizerem desde pequenas: ‘Se você
for muito bom e bem comportado, vai se dar bem na vida’. Portanto, a conclusão
inversa seria: se uma pessoa está em dificuldade, então ela deve ter se
comportado mal, deve ter cometido um erro grave – simples assim. Cada qual
recebe a vida que merece – simples assim. Então, simples assim, se toma a
decisão de não intervirmos a favor dessa pessoa, de ‘ficarmos de fora’. Simples
assim? Minha vida ensinou melhor. Eu ajudei porque sei a facilidade com que as
pessoas ficam numa situação difícil sem necessariamente terem feito algo de
errado. Eu nasci em Viena e, no começo da Primeira Guerra Mundial, estava com
cinco anos de idade. Minha mãe sempre me assegurou que eu era menina boa, digna
de ser amada e que ela estava satisfeita comigo – tanto em casa como na escola.
Quando eu tinha nove anos, não tínhamos o suficiente para comer. Ainda me
lembro muito bem dessa torturante sensação de fome, aquela dor aguda no
estômago, as tonturas desagradáveis contra as quais tinha de lutar. Jamais
esquecerei o choque que tive quando meus pais me enviaram para a Holanda, para
uma ação de ajuda para crianças necessitadas e famintas. Era um dia de dezembro
do ano de 1920, fazia um frio de rachar quando me levaram para o trem, penduraram
em meu pescoço um enorme cartaz com um nome estranho, se despediram de mim e me
deixaram sozinha – forçados pelas circunstâncias, é claro. Mas eu só compreendi
isso muito mais tarde. Eu estava muito abaixo do peso, sofria de tuberculose e
me sentia terrivelmente solitária. Por que eu havia merecido estar tão doente e
abandonada? Minha mãe me assegurara que eu não tinha feito nada de errado...
Portanto, aos 11 anos de idade, tive a experiência da rapidez com que se fica
numa situação difícil, de maneira totalmente inocente. Minha experiência me
mostrou que o mesmo também era valido para os judeus na Segunda Guerra Mundial.
Por isso achei natural ajudar até onde estivesse em meu alcance. Quando tomamos
conhecimento, comovidos, de que seis milhões de crianças, mulheres e homens
foram mortos, ao se fazer a pergunta ‘por quê’ devemos ter diante dos olhos a
indiferença mundial dos concidadãos ‘bem normais’ – a propósito, quase sempre
decentes, que trabalham duro e muitas vezes temem a Deus. Claro que é o regime
nazista que tem a responsabilidade pelo genocídio; contudo, sem a postura
passiva de tantas pessoas (não apenas na Alemanha e na Áustria), que com
certeza no fundo são boas pessoas, os bárbaros assassinatos jamais teriam
alcançado essa proporção. Quando – coisa que de fato me acontece ainda hoje –
pessoas jovens vêm a mim porque não podem acreditar que Hitler assassinou os
judeus sem nenhuma razão, receio que essa observação reflete exatamente aquela
educação que parte do pressuposto de que tal coisa jamais aconteceria com
pessoas inocentes. Então, eu lhes conto sobre Anne Frank e pergunto se
porventura supõem que aquela criança, aquela jovem menina fez alguma coisa
qualquer que justificasse seu destino cruel. ‘Não, claro que não’, as pessoas
respondem, em geral bastante envergonhadas, ‘Anne Frank é inocente’. ‘Exato’,
eu acrescento, ‘tão inocente quanto todos os outros seis milhões de judeus’. A
vida de Anne – e sua morte – tem valor simbólico para todos aqueles que hoje
são submetidos a preconceitos, discriminação e perseguição: responde pela
absoluta inocência das vítimas. Gostaria também de aproveitar a publicação de
‘Anne Frank – uma biografia’ para esclarecer um frequente mal-entendido. Sempre
dizem que Anne simboliza os seis milhões de vítimas do holocausto. Considero
errada essa interpretação. A vida e a morte de Anne são um destino individual.
Um destino individual – acontecido seis milhões de vezes. Anne não pode ocupar
como representante o lugar desses muitos indivíduos, dos quais os nazistas
roubaram a vida. Cada vítima representou sua própria visão de mundo e ideais,
cada vítima tinha seu próprio significado pessoal e singular para seus parentes
e seu ambiente. Hitler e seus colaboradores tentaram representar exatamente o
contrário em seu delírio racial: os judeus como imagens sem rosto do inimigo.
Ao mesmo tempo, eles assassinaram seis milhões de indivíduos, seis milhões de
destinos individuais. E a maioria das pessoas não quis saber. Anne é apenas uma
delas. No entanto, seu destino nos faz compreender a imensa perda que o mundo
sofreu com o holocausto. Anne, uma adolescente simples, tocou com seu talento o
coração e a razão de milhões de pessoas, enriquecendo sua vida – oxalá tenha
ampliado também sua visão. Nós devemos tomar consciência do quanto Anne, do
quanto todas as outras vítimas, cada qual à sua maneira, teriam contribuído com
nossa sociedade. Não pude salvar a vida de Anne – e me sinto profundamente
consternada por isso. No entanto, pude ajudá-la a viver mais dois anos. Ela
escreveu seu diário nesses dois anos, o diário que dá esperança a milhões de
pessoas no mundo inteiro e que faz um apelo para mais compreensão e respeito.
Isto confirma minha convicção de que toda tentativa é melhor do que a inação.
Uma tentativa pode fracassar; no caso da inação, o fracasso é garantido. Eu
pude salvar o diário de Anne e, desse modo, ajudar a realizar o maior desejo
dela: ‘Quero ser de utilidade e alegria para as pessoas que vivem à minha
volta, mas que não me conhecem’, Anne escreveu em 25 de março de 1944, mais ou
menos um ano antes de sua morte. ‘Quero continuar vivendo, mesmo depois de
minha morte’. E em 11 de maio, ela anotou; Você sabe que meu desejo mais
querido é um dia me tornar jornalista e mais tarde uma escritora famosa’. Anne
continua realmente a viver através de seu diário. Ela responde pela vitória do
espírito sobre o mal e a morte. Miep Gies, Amsterdam, janeiro de 1998".
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”