Estive na residência da
vigésima quarta vítima de assassinato em Santa Cruz, ocorrido em 26.10.2013.
Por coincidência, sua humilde residência é de número 24. Na sala estreitíssima,
amigos, familiares e vizinhos respeitosamente se aglomeravam para vê-lo. À porta, uma criança chorava.
É sempre estranho para mim
entrar na casa de quem não conheço em um momento como este. Mas enfrentei meus
medos e fui visitá-lo. Contemplei-o demoradamente. Trata-se de um jovem bem afeiçoado
que parece estar apenas dormindo, conforme observa uma das vizinhas.
A um canto, um senhor baixo,
negro, fuma como a querer dispersar sua dor junto com a fumaça. É o seu pai, um
humilde pedreiro de aspecto dócil, homem sem estudos. Busco entabular conversa
com ele e logo descubro fatos interessantes a respeito da vítima. O pai
esforça-se, como é compreensível em tais ocasiões, para resgatar o que havia de
melhor no filho. Explica-me que ele havia largado os estudos, na Escola João
Ferreira, que fica próxima, para ajudá-lo como servente.
Ressalta um detalhe que lhe é
muito caro nesse momento: a mulher, para quem estava trabalhando ultimamente,
gostava muito de seu filho, tirava brincadeiras com ele e dizia que gostava muito dele. Sim, as pessoas , até mesmo o povo rico ou mais ou menos, para quem trabalhavam, gostava de seu filho. E
continuou a falar-me das boas qualidade daquele a quem embalou, alimentou,
brincou, com quem conviveu por dezessete anos, carne de sua carne, alma de sua alma.
O pai não esconde que o filho
fumava o que ele chamou de “um pretão”, mas garantiu-me que ele não devia a
ninguém por seu vício e que não cheirava pedra nem cocaína, só o pretão. Como
trabalhava de servente, semanalmente reservava uma parte para gastar com a
droga. Mas, insistiu, nada devia a ninguém nem tinha inimigos.
Penso: um dos sonhos do pai
era vê-lo evoluir de servente a pedreiro. Ele, um senhor de idade, em breve
poderia ser substituído pelo filho na função.
Nesse instante chegaram alguns
amigos dele, ex-alunos meus. Um deles, profundamente entristecido, falou-me do
quão eram amigos e do quanto a vítima era legal. “Gilberto, ele era muito
brincalhão, mas não tirava brincadeira sem graça. Ele vivia trabalhando,
ajudando o pai. Ele ia muito lá em casa e não mexia em nada. Você podia deixar
qualquer objeto perto dele que ele não roubava. Pra mim é como se fosse um
irmão.”
Perguntei se ele tinha algum
processo, passagem pela polícia, e o amigo garantiu que não. A probabilidade,
disse-me ele, é a de que o alvo dos tiros não fosse ele, mas o outro com quem
andava, que conseguiu escapulir-se. Esse outro, sim, já tinha tido problemas
com alguns e era perseguido. Essa era a única explicação plausível que o amigo
do morto conseguia ver.
A morte de Wiliam,
disseram-me, foi uma surpresa para muita gente. O pai garantiu-me que ele não
tinha sofrido ameaças antes.
Como a sala é apertada e não
dispõe de assentos suficientes, cadeiras emprestadas por vizinhos solidários foram
colocadas na calçada em frente. Nelas, amigos, curiosos e familiares parecem
reconhecer a importância do silêncio nesses momentos e trocam breves frases
enquanto tentam consolar a mãe do falecido que se encontra ao centro.
O que se nota, nos olhos
aflitos de todos que ali estão é um evidente sentimento de medo que se mistura
à revolta e ao sentimento de impotência. Enquanto conversava com o pai, tentava
ler em seus olhos a dor que não se expressava em lágrimas, mas se fazia
evidente em cada gesto e coisa que dizia.
Trata-se de alguém que teme
pelos outros filhos, de um pedreiro que tem passado toda a vida tentando
construir um futuro melhor para si e para os que ama mas não tem tido condições
favoráveis. Tudo parece ruir diante de seus olhos e agora o que tinha de mais
precioso acaba de desmoronar.
Que lhe reserva o futuro
diante de um presente tão negro?
Todos temem abrir demais a
boca. O silêncio resignado e o choro contido dão uma falsa aparência de calma à
ruazinha estreita. Mas somente quem passou por
situação semelhante e quem ali reside é que pode ter ideia do desespero vivido
por aquela gente humilde.
Retratas fielmente as agruras de pessoas simples que convivem diuturnamente com as mazelas sociais. Seria fácil criticar estas pessoas. Dizer que estão desta forma porque querem, que não estudam porque são preguiçosos... entre tantos outros pensamentos que borbulham na minha mente. Poderia dizer EU CONSEGUI. Afinal, sou filha de um pedreiro e de uma costureira que acreditavam piamente que o melhor para as suas filhas era o caminho da Educação. Nasci no Sítio Ipueira em São Bento do Trairi- RN, viemos em tenra idade morar em Santa Cruz - RN procurando melhores condições de vida, especificamente morar no BAIRRO DO PARAISO. Estudei na E. E. João Ferreira de Souza; na E. E. Cosme Ferreira Marques; na Escola Estadual – E. E. Prof.Fco de Assis Dias Ribeiro; Estudei no Gentil Ferreira de Souza. Fiz Pedagogia na UFRN – Campus de Santa Cruz. Comecei a trabalhar muito cedo. Aos 09 anos já ensinava em casa matemática e datilografia, aos 12 comecei a trabalhar no comércio. Passei muitas dificuldades e sofri muitos preconceitos por ser moradora do Bairro do Paraiso. Hoje tenho pós-graduação e estou fazendo um mestrado. Moro em Natal – Rn e trabalho em Educação. Repito: Poderia dizer EU CONSEGUI e sair criticando a situação em que muitos se encontram, mas tenho consciência de que nem todos tem as mesmas oportunidades e conseguem ultrapassar as barreiras sociais impostas pela sociedade em que vivemos. E, temos também que observar o contexto vivido pelos jovens e adolescentes no meu tempo e no tempo de hoje. Devido a falta de investimento na infraestrutura social – saúde, educação, lazer, segurança – ao longo das décadas a violência desenfreada está ceifando a vida de muitos e, muitas das vezes, a vida de inocentes. Temos que reagir. Hoje foi o filho de pedreiro, pobre e humilde. Amanhã poderá ser um filho de um fidalgo. Não é justo para com este e nem para com aquele.
ResponderExcluirFrancisca Joseni dos Santos. Professora.
Parabéns Gilberto, pela grande sensibilidade e pelos gestos verdadeiramente humanos. Sua narrativa vem do espírito e da compreensão social que você tem, senti plenamente no decorrer da leitura. O mundo está precisando de pessoas assim como você, que não julga e reconhece o ser humano na sua complexidade e história de vida. Gostaria de expressar tudo que sinto interiormente nesse momento, toda inquietude que permeia minha alma ao ler algo tão triste e tão corriqueiro em nossa cidade e no Brasil inteiro, mas, é longo o que tenho para dizer, então, irei resumir em poucas palavras.
ResponderExcluirInfeliz e desprovido de AMOR é o homem que não consegue enxergar outro ser humano em seu contexto biopsicossocial e o analisa superficialmente. Há uma história por trás de cada pessoa, de cada sociedade e de cada país que explica profundamente os fatos. Há também muita alienação por trás dos donos da verdade. O jovem é mais uma vítima do caos de uma sociedade capitalista e desumana. A família em questão é merecedora de compaixão,de solidariedade e de compreensão. Enfim, tenho muito para falar,porém, tenho que resumir.
li com bastante atenção o texto inteligente do poeta Gilberto Cardoso e ali ele retratou o que acontece na vida dessas famílias,quase todos esses jovens assassinados tem seus pais homens e mulheres honestas e trabalhadoras e que veem seus filhos acabar dessa forma e sem puder fazer nada, podem até alguém querer banalizar esses crimes falando que eles estão se matando entre se, mais por trás de tudo isso vem o medo das pessoas, das famílias e a sensação de insegurança e de potencialidade, só Jesus para nos proteger nestas situações.
ResponderExcluirGilberto Cardoso Dos Santos simplesmente seu texto transmite todo sentimento que um verdadeiro ser humano pode sentir um pelo outro,Voce conseguiu extrair o verdadeiro sentimento de um pai sofrido e angustiado ..Tenho absoluta certeza que esse não era o destino que ele queria para seu filho tão esforçado apesar do seu vicio me parece que ele era um garoto que almejava outros horizontes, sei que se tivesse a oportunidade a sua frente ele pensaria 2X em qual caminho deveria seguir! Parabéns pelo texto!!!
ResponderExcluirGostei demais deste seu texto meu amigo e da sua visão inteligente e sensata,agente que mora neste Bairro tão importante na cultura e que tem na sua grande maioria gente honesta e trabalhadora e que está pagando um preço muito alto recorrente desta violência desenfreada e insuportável e que estamos sem entender pra que tanto, os nossos jovens precisam sair de tudo isso e ter mais fé em Deus, parabéns e vamos lutar contra tudo isso.
ResponderExcluirParabéns, Gilberto, pela bela interpretação do momento que estamos vivendo! Feia é a nossa situação.
ResponderExcluirParabéns, Gilberto! Bela interpretação do momento que estamos vivendo,
ResponderExcluiras pessoas deveriam acessar mais esse blog, vou recomendar aos amigos esse espaço inteligente, parabéns por esse textos e aos colunistas
ResponderExcluirCada que se coloque na pele do pai, cujo sentimento e dor foi descrito em toda a sua crueza pelo Gilberto, vai sentir toda a dimensão do drama vivido pela família da vítima. Enquanto a sociedade não encontrar saída para o fato social do consumo de drogas, identificando-lhe as causas e eliminando-as, a terrível lógica do tráfico de eliminar todo aquele que, de qualquer modo, embaraça sua atividade, esse drama vai continuar e vidas vão continuar a ser ceifadas, sem dó nem piedade, por aqueles que ganham a vida à custa da destruição da vida dos outros, mesmo quando não as matam literalmente, como, infelizmente, foi o caso desse jovem, que recebeu a bala destinada talvez àquele que lhe supria da droga.
ResponderExcluirA gente precisa transformar essa indignação de espasmos em uma consciência crítica constante, encharcada de humanidade, de igualitarismo radical, que atravesse nosso cotidiano. Do contrário a gente vai perder essa batalha. Os Datenas e os Rezendes estão convencidos e convencem milhares de suas falsas soluções. Parabéns Gilberto Cardoso Dos Santos
ResponderExcluirCaríssimos, habitantes sociáveis e de boa índole, estamos sofrendo muito nos dias de hoje, por prática de execução sumária da vida humana, e outras ações destruidoras. Eu e Você, estamos acuados e deprimidos em função dos desmandos criado e alimentado por ações destrutivas, sem nunca ter o interesse e cortar o mal pela raiz.
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