INTERSECCIONALIDADE
Desde pequena, sentia que incomodava. Primeiro, por ser negra; depois, por não conseguir caminhar como as outras; na adolescência, por amar mulheres; mais tarde, por não ter dinheiro.
Já ouvi que minha cadeira de rodas “causa dificuldade” para a empresa, em razão disso, não me contratam. Em outros momentos, percebo olhares fechando portas antes mesmo que eu possa batê-las com minhas mãos gordas.
Ser acompanhada na rua por minha namorada é quase um ato de resistência. Olhares de desprezo, piadinhas, silêncio hostil, dá a perceber que a sociedade tem um roteiro pronto apenas para mulheres brancas, magras, heterossexuais, "femininas", andantes. Eu falho em todas essas expectativas, consequentemente, sou tratada com desprezo.
No sistema de saúde, milhares de vezes fui ignorada. Teve médico que mal me olhou no rosto e psicóloga que sugeriu que talvez meu sofrimento viesse da "falta de autoestima", sem sequer ouvir o que eu tinha a dizer.
Cansei de entrar em espaços que se dizem progressistas e perceber que não fui pensada para estar ali. O feminismo que me convidaram a seguir falava muito sobre liberdade sexual, mas pouco sobre mulheres negras lésbicas e pobres como eu. Os debates antirracistas, na maioria das vezes, não enxergam minha deficiência. Até mesmo dentro de comunidades discriminadas, já me senti invisível.
Viver sendo minoria é se encontrar com a solidão em cada esquina. Entender o que é interseccionalidade me fez perceber que existe, em quase todas as pessoas, dificuldade em lidar com situações difíceis de serem classificadas em uma só categoria.
Existir como eu sou, é um ato político. Não quero piedade, quero justiça para um corpo deficiente, pintado da negritude dos meus antepassados, onde minha história importe.
Contar tudo isso não é fácil, mas necessário. Falar assim é falar sobre vidas como a minha, que desafiam estatísticas. E se alguém entender essa minha realidade, já é um grande passo para que o mundo comece, enfim, a se tornar um lugar mais justo.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 02.07.2025 - 06h 13min.
O texto mostra como o cruzamento de identidades expõe as camadas de exclusão, transformando a simples existência em um ato de resistência e um clamor por justiça. - Gilberto Cardoso
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