CRÔNICA DE UM ILUDIDO CONSCIENTE
Muitos pensamentos contraditórios surgem à velocidade da luz. Antigamente, eu acreditava que a vida não fazia o menor sentido. Depois de repetir esse mantra tantas vezes quanto se repete “tô chegando” quando ainda se está de toalha, resolvi inovar: virei otimista do tipo inocente.
Desde que adotei essa nova filosofia, tudo mudou. Atividades como tirar o lixo, tomar banho ou lavar o carro passaram a ganhar discursos motivacionais dignos de reality show de superação. Cada tarefa virou uma chance de me reinventar, ou pelo menos de fingir que sim.
Hoje, sigo o sábio conselho de Fernando Pessoa: "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena." (Mas confesso que às vezes desconfio que ele estava de sacanagem). Mesmo assim, sigo firme, acreditando que lavar louça é missão sagrada.
Encontrar sentido em tarefas repetitivas virou meu esporte favorito, só perde pra correr atrás de bola, porque, segundo os gurus do bem-estar, isso libera hormônios da felicidade. Se é pra ser feliz, então que seja com chuteira nos pés.
Agora posso repetir todos os padrões de uma vida normal e ainda sair dizendo por aí que estou pleno. A mediocridade ganhou um filtro motivacional. E eu, graças ao empurrãozinho da minha genética confusa, sigo em constante treinamento espiritual.
Minhas contradições se tornaram minhas aliadas. Quando uma colher cai da mesa, em vez de soltar um palavrão, comemoro: “Que maravilha, o feijão manchou o piso! Afinal, agora terei o privilégio de sentir aquela dor agradável nas costas ao me abaixar para limpar o desastre doméstico. Sorrio e murmuro: que dor abençoada!
A coisa ficou tão internalizada que o meu subconsciente já aceita tudo sem reclamar. O que era irritação virou prazer. Quando o dedo mindinho bate na quina da mesa (aquele clássico da dor injusta), fico paralisado, contemplando o cosmos. Nada de gritar. Apenas absorvo a lição do universo, suando em silêncio. Afinal, se aconteceu, é porque era pra acontecer. Nem a mesa nem meu dedo têm culpa. É carma imobiliário.
E assim sigo, pleno e absurdamente adaptado, transformando cada tragédia cotidiana em espetáculo de positividade. Se estou bem? Difícil dizer. Mas pelo menos consegui um método eficaz de mascarar o caos com uma boa dose de autoengano funcional.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 28.04.2025 – 01h38min
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