terça-feira, 13 de junho de 2023

REFLUXO



 REFLUXO 



Chegou em casa depois de um dia estafante. Ao abrir a porta lembrou-se que doze horas se passaram desde o momento que havia deixado o prédio. Sentiu um cheiro estranho dentro de casa, porém... 

Quando vinha subindo a escada seus pensamentos se concentraram em cada degrau que alcançava com muita dificuldade. Já estava na hora de sair dali para um prédio que tivesse elevador e canos consertados. Será que terá que subir sempre degraus o resto da vida? Ao estacionar o carro, lembrou-se de fechar a porta com a chave, pois o controle estava quebrado e nunca mais tivera dinheiro para consertá-lo. O ar-condicionado precisava de reparo, mas isso poderia ser deixado para os próximos meses de calor intenso. 

Um semáforo antes, ficou a imaginar quanto carregava de ilusão quando veio para a cidade grande com seus sonhos agarrados na vontade de desenvolver seus talentos artísticos na dramaturgia. 

Lá atrás, deparou-se com crianças pedintes nos sinais. Os seus deveriam estar ali dentro daquele bando de meninos soltos na rua. Pouco importava se estavam ou não. Sua vida já estava muito atribulada para se preocupar com alguém a mais do que ele. 

A música tocando de um promissor estreante o deixava mais preocupado. Enquanto envelhece, vão surgindo novos talentos que superam em muito sua geração, e isso o faz calcular que precisa mudar, só que a necessidade de mudança precisa ser acompanhada pela disposição para tal. 

Jamais pensaria em estar no meio do engarrafamento totalmente adaptado à noite daquelas estradas iluminadas. Ao expor seus projetos para a comissão, hoje à tarde, teve que diminuir os custos. Hoje quase ninguém mais vai ao teatro, por isso sua subsistência torna-se mais difícil proporcionalmente a cada novo uso dos entretenimentos virtuais. 

Naquele momento do cafezinho, pensou em abrir uma empresa de casamentos. Tantas jovens envolvidas em trabalhos sem tempo para mais nada. O caminho já estava bem solidificado, pois sempre conversava com pessoas solteiras que não tinham tempo para namorar e sentia que essa seria uma forma de ganhar dinheiro. Trocaria o trabalho de produtor por assessor de cupido. 

Ao chegar à empresa, sentiu um pouco de discriminação por parte de alguns devido ao seu estrelismo há muito sedimentado. Havia almoçado com sua tia e lá sentiu como é chato não ter ninguém para acompanhá-lo nas pequenas e simples coisas, tipo um almoço ou uma reunião de trabalho. Lá havia deixado ela e a enfermeira, pacientemente, aguentando as histórias recontadas à exaustão do tempo em que acontecia algo na vida daquela idosa. 

Muita insônia na noite passada quando foi convidado para passar o período de festas com ela. Não tinha mais saco para voltar ao interior onde deixou tudo resolvido. Parecia que quando pensava em retornar para algum lugar, todos os avanços na sua vida, regrediam. 

Ao amanhecer, foi que percebeu, através dos cabelos molhados de suor, os vários ciclos de febre que havia passado durante a noite, mas os sintomas da doença já não mais existiam. Uma gripe falhara em matá-lo como achava que não escaparia.   

Acordou com o despertador chamando-o para tomar rumo. O sol já chegando junto com o barulho ajudaram a lhe impulsionar de angústia adentro. Durante um certo tempo, abriu os olhos sem ter ânimo para desligar o vídeo falando de algo que ele nem se lembrava mais o assunto. Era assim que se distraía durante a madrugada para não entrar nos pensamentos que afloravam a cada vez que despertava para a realidade consciente. Vivia querendo se esconder atrás do sono, mas infelizmente essa moita continuava rala. 

No jantar passado, resolveu se alimentar de líquido para que não tivesse influência nos costumeiros pesadelos. Perguntava às pessoas se elas também sofriam com perseguições, porém ninguém nunca afirmava que se lembrava de tais imagens, somente ele as sentia como se fossem reais. 

Lembra-se que ao se deitar, colocou meias seguindo as orientações de que há maior pressão nas pernas e o sangue circula melhor evitando qualquer transtorno durante à noite. Não percebeu muita diferença, no entanto por estar seguindo os ensinamentos que surgem a cada momento, fez. 

Pela madrugada ouviu quatro disparos para o lado de lá do morro, coisa que antes jamais imaginaria, agora é comum. Gargarejava a cada ida ao banheiro para evitar que a tosse prejudicasse  suas cordas vocais. 

Não tomou banho pela manhã, pois já estava quase em cima da hora para chegar onde tinha agendado. Na descida, encontrou alguém com um cão lambedor de pés de estranhos. Isso o constrangeu, mas em nome da boa relação com vizinhas, sorriu amarelo.

Chegou resmungando ao carro por não gostar de animais, ainda mais aqueles que latem a todo momento. Olhou o marcador de combustível percebendo aliviado que só precisaria enchê-lo na próxima semana.  

Ligou o carro enquanto arrumava a garrafa d’água congelada entre o câmbio. Precisava se hidratar por recomendação médica. Saiu e deparou-se com os homens de sempre recolhendo lixo. Eles já têm dois veículos adquiridos com a reciclagem. Pai e filho no mesmo ramo. Homens sisudos e trabalhadores. Carregou as imagens deles até o próximo cruzamento quando pisou mais forte no acelerador e se concentrou em um caminhão já descarregando camarão nos fundos do restaurante que é freguês. Quantas pessoas envolvidas naquele trabalho de servirem um prato apreciável que tanto gosta. 

Parou no posto para calibrar os pneus antes de chegar à casa do convite para o almoço. Precisou negociar com um ajudante de trânsito para estacionar em frente. Subiu os outros degraus. Lá em cima as recordações das paredes descascando o fez abrir-lhe a consciência de que a família também não estava tão bem economicamente. A tia sorriu com uma agulha na mão tentando preencher o tempo de espera em ficar boa. Pura ilusão, pensou ele sabendo que era uma doença incurável. Chegou cedo e passaram o resto da manhã relembrando o quanto aquele casarão havia sido palco de encontros memoráveis. Precisava bajular a tia responsável por alguns empréstimos esquecidos.  

Desceu os degraus depois do almoço com a esperança de que precisava colocar todo o seu potencial na nova peça a ser apresentada. Não tinha mais o vigor dos vinte anos, mesmo assim tentava seguir em frente sabendo que sem vigor físico a experiência de vida pouco vale. Sentia-se exausto de tanta correria. Ultimamente trancava-se em casa e ficava buscando novas formas de apresentar conteúdos dinâmicos, só que a mente não mais os alcançava. Lia e relia os clássicos sem quase nada entendê-los. 

Já tinha ouvido falar que com o tempo não se consegue acompanhar o que se lê. Ele estava naquele estágio de ficar horas e horas esperando a vontade de seguir adiante. Olhava para a parede em branco sem vontade de continuar pensando. Logo ele que cuidava de vários projetos ao mesmo tempo, agora só um já o deixava sem soluções. Os próprios atores já estavam saindo da companhia. Não sentiam mais tanta firmeza no que ele dizia. O pior é que ele tinha consciência da sua degradação mental, e isso o fazia sofrer mais ainda.   

Despertou das suas divagações na escuridão da sala... Acendeu a luz e BUUUUM... a fagulha do interruptor provocou a explosão por ter esquecido o gás aberto. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 13.06.2023 – 11H15min.



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