quarta-feira, 1 de março de 2023

TIRANDO PROVEITO - Heraldo Lins

 


TIRANDO PROVEITO  


A geladeira "deu pau" e o meu grande desgosto foi ela, com antecedência, não ter me avisado que estava cansada de tanto gelar.  É revoltante, depois de uma relação de mais de doze anos, a pessoa ser abandonada de uma hora pra outra. 


Lembro-me quando ela chegou com seu enxoval de isopor e papelão nos braços dos seguranças que a depositaram na sala, e saíram. Fiquei admirando a virgindade do seu brilho esmaltado, e assim que se deu conta que estávamos a sós, procedeu de forma sonolenta só podendo ser ligada no outro dia. Fiquei esperançoso que minha vida jamais seria a mesma. 


Quando fui para a outra moradia, ela me acompanhou sem nem perguntar o porquê de não ter sido consultada sobre a mudança. Agora me sinto frustrado pela falta de habilidade em me manter numa relação fria gelada. Daqui a pouco o técnico vem dar o diagnóstico. 


Acredito que foi algum cano entupido, mas não pretendo, sem a devida capacitação,  continuar tentando despertá-la. Alguém disse que se eu a desligasse, o gelo derreteria e ela voltaria a funcionar. Tentei, e nada. Com essa já é a terceira vez que apresenta a mesma indisposição, sem contar que tive que trocar a borracha para mantê-la de boca fechada. 


Conviver numa relação gelada,  trouxe-me também a lembrança da sua total indiferença quando o novo fogão chegou para dividir o espaço da cozinha. Quase que ela dá um escândalo quando coloquei uma porta de vidro ao seu lado, entretanto adaptou-se bem ao isolar-se da sua rival máquina de lavar quando esta estava parindo roupa limpa.


Ela sempre foi a mais requisitada, e por isso cheia de mimo. O que eu acho chato é que esse povo nem pede licença para me abrir, diz aguentando o técnico suado mexendo no seu ventilador. O homem veio através do seguro do carro que inclui manutenção nos eletrodomésticos. Eu sei que ela não gosta de ser chamada de eletro, porém foi desligada e isso já basta para que eu possa falar sem medo de represália. 


Os minutos se passam e o técnico, enquanto usa um secador de cabelo para "liquidar" o resto do gelo, fica falando sobre a ilha de Fernando de Noronha. Seu cunhado mora por lá, e certa vez estavam à beira mar avistando uns caranguejos dando sopa. Eram muitos, e essa fartura foi motivo de se deixarem levar pela tentação de recolhê-los num saco plástico. Guardaram na mochila, porém dali a pouco avistaram um brilho em acima dos paredões de pedras distantes de onde estavam. O que é aquilo?, perguntou o visitante ao seu cunhado. Eita! É o pessoal do IBAMA. Vamos ter que ir soltando os bichos aos poucos senão seremos presos. Quando chegou lá em cima, foram abordados e liberados por falta de provas. Foram salvos pelo gongo, disse um dos guardas.


As arribaçãs passeiam nos pés da gente como se fossem pintos, disse ele finalizando o serviço. Nessa conversa, deu até para que eu me vangloriasse de ter ganhado o primeiro lugar num concurso de redação sobre as tartarugas marinhas. Foi em noventa e seis. Ele pouca importância deu ao meu mérito, mesmo eu dizendo que foram três dias na ilha com tudo pago pelo IBAMA e ainda com direito a levar minha recém-casada. 


Na verdade, foram quatro dias, pois o avião só pousava duas vezes por semana, por isso fui beneficiado. Enquanto conversava com ele, recordava-me de um funcionário que estava doido para ir embora da ilha. Ele disse que ali só é bom apenas durante as primeiras semanas. Depois fica aquela rotina que afeta ate os caranguejos e arribaçãs que se deixam capturar. Foi lá que eu voei dentro d'água, pois é essa a sensação que se tem ao mergulhar com cilindro nas costas. 


Não tem quem diga, mas foi assim que alguém aproveitou o “prego da geladeira” para dar um polimento na vaidade. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.02.2023 - 19h20min



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