domingo, 18 de dezembro de 2022

O TERCEIRO CAVALHEIRO A QUEM ELA DEU A MÃO - Aldenir Dantas

 








O terceiro cavalheiro, a quem ela deu a mão


Não sou um criador de histórias. Apenas, as conto. Se as criasse, há muito teria construído um personagem para compartilhar o rico e incompreendido mundo de dona Dodó. Talvez por me achar sempre com um pé na lucidez e o outro procurando onde pisar, dentre todas as mericoenses, Eudóxia é a que mais admiro. E contar parte da sua história fixou, ainda mais, em minhas lembranças a imagem daquela mulher bonita, sensível, inteligente e alheia ao quadrado traçado pela sociedade onde, tais quais passarinhos engaiolados, se locomovem as pessoas normais.


Ocorreu-me que, numa tarde preguiçosa de domingo, estando eu deitado numa rede na varanda, alguém tocou a campainha. Era um senhor alto, magro, de farta barba branca, chapéu de feltro e, mesmo demonstrando jovialidade nos gestos e na fala, aparentava mais de setenta anos. Convidei-o a entrar, sentar e meu olhar indagador arrancou dele a resposta à pergunta que nem cheguei a fazer.


— Meu nome não lhe diz nada. Cheguei às terras de Mericó quando delas você só guardava lembranças. Tomando conhecimento do seu interesse em registrar as histórias daquele povo e, principalmente, da sua simpatia por uma das suas moradoras, de passagem por estas paragens, resolvi trazer-lhe algumas informações do seu interesse.


Impressionaram-me as palavras daquele simpático senhor. Em poucos minutos de prosa, tratávamo-nos como amigos de longas datas. Desse sentimento e de uma agradável e reveladora conversa, entre xícaras de café, extraí o que doravante narrarei, recorrendo à licença literária para fazer uso de um narrador onisciente.

 

Aquele poderia ter sido mais um entardecer amarelado de Mericó, preferido por dona Dodó para passear às margens do rio com sua sombrinha, chapéu e roupas longas e esvoaçantes. Ou, talvez, sentar nos lajeados para observar a correnteza, ouvir o murmúrio das pequenas cascatas e assistir ao Sol se pondo, enquanto conversava com mais uma cavalheiresca companhia. Acostumadas, as pessoas deixaram de comentar as suas esquisitices. Alguns, até, admiravam a beleza daquele quadro pintado pelo seu alheamento às convenções. Contudo, aquele não fora apenas mais um entardecer e logo a cidade ficara sabendo: naquele dia, a sua companhia não fora invisível como nos demais. Tinha carne e osso.


Famoso pelo excesso de curiosidade, Biluca fora o decifrador do enigma.


— Pois eu juro pela cruz de Nosso Senhor que vi, dona Menina. Era seu João Guarda, de conversa com dona Dodó.


— Menino, ele devia tá de passagem, falou com a moça, aí tu fica de mexerico.


— Que nada! Eu passei foi mais de meia hora olhando. Ela sentada na pedra, ele em pé com o chapéu na mão, conversando. Até, quase, o escurecer.


— Eu sabia que aquele homem era um cachaceiro, mas, que era doido, não.


— Deixe disso, compadre Zé. Isso não quer dizer que o homem seja doido.

 

A notícia, rapidamente, se espalhou e os encontros se repetiram aguçando a imaginação de alguns e a língua de outros.


— Tô começando achar que aquilo de dona Dodó é mais severgonhice do que maluquice, comadre.


— Coisa feia, mesmo! Se encontrar com um macho na beira do rio, quase de  noite. Mas que aquela coitada é fraca do juízo, isso é.


— É. E mais com um pinguço daquele! Só falta cair morto, de tanto beber.


João Guarda chegara em Mericó, transferido, para assumir o posto de agente fiscal. Viúvo, acompanhado da filha de vinte e poucos anos, ocupava a casa da corrente. O imóvel pertencente ao Estado era assim chamado por ser, através dele, onde se controlava a corrente do posto fiscal, à entrada da cidade.


Homem bom, simples mas, afora o tempo em que trabalhava, estava cercado de amigos de bar, bebendo. Muitas vezes, precisava ser levado para casa, pelos parceiros de copo. Sua vida não era mais caótica porque a filha administrava a casa e cuidava dele como de um filho rebelde, trabalhoso, mas amado.


Tinha alma de artista e apurada sensibilidade para a música e para a poesia pelas quais, facilmente se deixava extasiar. Não podia ouvir Vicente Celestino, Orlando Silva, Francisco Alves que se punha a cantar e, se ainda não tivesse bebido, começava imediatamente. Mas o seu preferido, mesmo, era Lupicínio Rodrigues.

 

Chegara muitas vezes a encher os olhos de lágrimas ao ouvir “eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que lhe encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar...”


Boêmio incurável, nem o casamento conseguira arrancá-lo da avassaladora angústia romântica que o atordoava, mergulhando-o mais e mais nas longas noitadas de bebedeiras.


Sóbrio, era cortês, educado, comedido e gentil nas palavras e no trato com as pessoas. Sob o efeito do álcool era teatral, patético, recitava Olavo Bilac, cantava à capela, falava de paixões irrealizadas e chorava como quem acabara de perder um grande amor. Mas nunca houve esse grande amor e, sim, uma vida de boemia desregrada, a comodidade de um casamento e uma paixão quixotesca por um ser idealizado.


Diante da crescente boataria, preocupada com a amiga Dodó, Coca chegou a perguntar-lhe sobre seus encontros, comentando que isso poderia não ficar bem. A resposta foi simples e curta:


— Nada além de um amigo. Um cavalheiro, educado e gentil, como tantos outros.


Como tantos outros, mas com o diferencial de pertencer ao mundo real. E foi esse mundo que ocupou portas e janelas, numa daquelas tardes, para espiar e comentar: dona Dodó e João Guarda, juntos, retornando do passeio. Ele com uma roupa de domingo e ela com um dos seus costumeiros vestidos esvoaçantes, chapéu de palha coberto de rendas, luvas e sombrinha. Ele a conduzia pelo braço, enquanto conversavam, indiferentes aos olhares. Chegando à porta da casa, o cavalheiro, tirando o chapéu, curvou-se, beijou sua mão e despediu-se.

 

Os passeios continuaram e, certo dia, ao deixá-la em casa, o amigo, aceitando um convite, entrou e ali passou quarenta e cinco minutos, marcados em vários relógios. Doravante, para dona Dodó, o rótulo de sem vergonha superou o de doidice. Para João Guarda, o de doido superou o de beberrão.

Por ser homem, pelo posto que ocupava e pelo pouco contato que tinha com as pessoas, não sentiu ele muita reação aos seus encontros, tratados abertamente como chamego. Apenas um ou outro o evitava. Afinal, o que fazia era mais do que se envolver com uma mulher. Tratava-se de uma moça sem pai, sem mãe e, mesmo madura em idade, desprovida das faculdades mentais. Para os moralistas, aquilo era ultrajante, imoral e deveria ser comunicado ao delegado e ao padre.


Deveriam expulsar aquele devasso da cidade. Com ela, a situação foi diferente. Muitos do que a tratavam como pobre coitada, louca, motivo de riso e chacota, passaram a virar-lhe o rosto. Chegaram ao cúmulo de chamá-la de “a quenga do guarda”. Ela jamais demonstrou reação a tais provocações. Manteve-se livre, decidida e altaneira no seu ir e vir.


O mesmo não se deu com a amiga Coca, que passou a sofrer, por tabela, uma série de achincalhes. Era tratada como cúmplice das coisas horríveis que, segundo a fértil imaginação do povo, aconteciam entre as quatro paredes da casa da amiga.


Afastando-se do bar, seu João era visto, apenas, no exercício do seu trabalho ou na companhia da amiga. Isso gerava inveja entre os partícipes das bebedeiras por ele financiadas, fortalecendo os impensáveis comentários em torno da relação entre os dois.

 

Coca resistiu o quanto pode para não denunciar o caso às autoridades. E não o fazia, por não ver nada de mal naquela história. Pelo contrário, a amiga passara a demonstrar notório equilíbrio naqueles dias. Contudo, pressionada pelas pessoas e vergada pelo peso da responsabilidade e do bem devotado à dona Dodó, após a missa, participou o assunto ao padre. Ao final de longo e detalhado relato, para sua surpresa, o padre apenas perguntou:


— E como está Eudóxia? Como tem se comportado? Como está a sua saúde?


— Algumas daquelas esquisitices continuam, padre. Fora disso, parece tão bem.


Cuida-se direitinho, arruma bem a casa, faz a comida. Quase não precisa da minha ajuda.


— Agora, pode ir. Vou chamar esse senhor para uma conversa.
E assim aconteceu:


— O senhor é um homem maduro, experiente, bem empregado, apreciador da boemia. Diga-me, o que o faz se aproximar e o que deseja dessa pobre alma lacerada pelas tragédias da vida?


— Desculpe-me pela ousadia de contradizê-lo, reverendo mas, Eudóxia não é uma pobre alma. Pobre alma, para mim, é o demônio, se é que ele existe. Pobre porque, voluntariamente, privou-se da presença de Deus.

 

— Mas é claro que o demônio existe!

— Quanto à tragédia da sua vida, senhor, foi perder o amor dos entes queridos. Há, todavia, uma tragédia maior ocorrendo com ela todos os dias, contra a qual todos podiam fazer algo e ninguém faz. Com todo o respeito, nem o senhor.


— Que tragédia, além dessa em que o senhor está envolvido?


— A tragédia do desamor, do descaso, da chacota, do rótulo de inútil, de imprestável, de louca. E, agora, de rótulos mais perversos. Esquecem, senhor, que ela é uma alma sensível ao belo, à natureza, à poesia, à música. Este mundo seria bem melhor se houvesse mais pessoas loucas, como ela.


— Pode ser. Até concordo. Mas isso não dá o direito de um homem, como o senhor, aproveitar-se da pureza dessa moça. Porque não procura uma mulher, casa novamente e refaz sua vida sob as bênçãos da santa igreja? Uma relação de concubinato com uma, uma... deficiente mental é algo, assim, impensável. Fere gravemente a lei de Deus, meu filho.


— Pode me excomungar pelo que vou lhe dizer agora, padre, mas está aqui na garganta e não dá para sufocar: deficiência mental tem o senhor e todos os seus paroquianos, com suas mentes doentias criando uma relação de concubinato que nunca existiu.


— Meu Deus! – falou, deu um longo suspiro e continuou – Mas, o que encontra o senhor naquela pobre mulher?


— Nunca o senhor saberá, padre, o que é conduzir uma dama perfumada, bem vestida, num passeio de fim de tarde, admirando a relva, o pôr-do-sol, o manso deslizar das águas de um riacho. E, ao mesmo tempo, falar de Bilac, de Balzac,
de Victor Hugo como se fossem nossos contemporâneos. Jamais saberá, padre, o que é encontrar a sua espera em uma sala ornada de flores silvestres, uma mulher vestida de levezas, envolta em perfumes. Nunca saberão, padre. Nem o senhor, nem os muitos que aqui vêm em busca do reino dos céus. Não saberão que o prazer maior não está em corpos físicos que se interpenetram, mas em almas que se encontram e comungam os mesmos sonhos, por mais loucos que estes possam parecer.


— Sou forçado a reconhecer que o senhor tem razão – falou o pároco e, desnorteado, fez uma pausa, retemperou-se e retomando a serenidade, continuou.


– Tem toda razão, meu filho. Infelizmente, nunca saberei. Mas Deus me proporciona outros prazeres da alma. E que Ele me perdoe, mas sinto inveja do senhor. Vai, meu filho, e seja feliz como Deus quiser. Essa sua vida de desvios deve ter sido uma angustiante e dolorosa busca da tua alma. Acredito e espero que ela tenha acabado e que, doravante, viva em paz. Vai, com meu pedido dedesculpas, a minha bênção e a proteção de Deus.


— Quero mais do que isso, reverendo. Quero a bênção da igreja para viver com Eudóxia. Nem tanto por mim, mas por ela e pela comunidade da qual fazemos parte.


O padre levantou-se e olhou demoradamente e com ares de profunda e repentina admiração, para seu interlocutor. Seus olhos brilhavam e, fugindo-lhe ao controle, uma lágrima lhe escorreu pela face. Faltaram-lhe palavras. A resposta foi um caloroso abraço.


Extraído do livro


Aldenir Dantas




2 comentários:

  1. Grande Gilberto e demais amigos da APOESC gratidão pelo apoio à pequena e pacata Mericó, com suas Histórias Mal Contadas.

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  2. Envolvente história, ilustre mericoense Aldenir. Muito bem contada! - Gilberto Cardoso dos Santos

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