Na manhã do dia 2 de maio de 2022, Daliana Cascudo, presidente do Ludovicus, foi surpreendida com triste realidade: O monumento dedicado ao seu avô - ícone da cultura do RN e maior folclorista do Brasil - tinha sido vandalizado.
Avermelharam suas mãos para estereotipá-lo como um ser responsável por derramamento de sangue. A cor associada ao slogan "Fascistas não passarão" nos leva a essa linha interpretativa. Ficamos, porém, a nos perguntar sobre a pertinência do que tentam impingir à imagem do renomado historiador.
O visionário Cascudo foi um homem do seu tempo. Não teve oportunidade de ver o fascismo da perspectiva histórica e com a conotação que hoje o vemos. Apesar de "humano, demasiado humano", mais foram seus acertos que seus erros. Muito do que ele expôs sobre os perigos do radicalismo ideológico tem se revelado verdadeiro. Ele fez menção de uma arte empobrecida pelo panfletarismo, comum no seu tempo - poemas e músicas que incitavam ao ódio e à destruição.
Observamos que a pichação não é muito diferente disso. Se é de fato uma arte digna de endosso, deixa a desejar como todas as expressões artísticas radicalmente comprometidas com alguma ideologia. Vivo hoje, desejoso de aprender e bem intencionado como era, Cascudo se guiaria por paradigmas mais apropriados ao nosso tempo e teria percepção mais acurada do que viu, ouviu e leu. Era, antes de tudo, um homem comprometido com sua gente, altruísta, jamais mercenário, jamais sanguinário.
George Orwell inicia seu importante ensaio "O que é fascismo?" expondo a dificuldade que os ingleses de seu tempo tinham em definir o que fosse o fascismo.
"Neste país", disse ele, "se se pedir a uma
pessoa medianamente esclarecida que defina o fascismo, ela em geral
responderá apontando os regimes alemão e italiano. Mas isso é muito
insatisfatório, porque mesmo os grandes Estados fascistas diferem em boa
medida um do outro em estrutura e em ideologia."
A gente se pergunta se quem garatujou o monumento com "Fascistas não passarão" saberia o real sentido disso ou se usa a frase apenas como um mantra mal compreendido. Estaria sóbrio? Numa rápida leitura do que foi feito, deve se tratar de alguém que, incoerentemente, defenderia a memória de algum líder que de fato teve suas mãos mergulhadas em sangue humano.
Quem praticou tal ato não tem noção do desserviço que está prestando à democracia, tão fragilizada nesse momento. Um governo de esquerda ao qual deve criticar por não ser truculento como ele, será o responsável pela recuperação do monumento. Dinheiro público será gasto. Trata-se de um protesto mesquinho, injustificável que nada produz além de revolta e animosidade contra a causa burramente defendida.
Carlos Drummond de Andrade, cuja estátua também tem sido recorrentemente vandalizada, escreveu algo aplicável a nossos dias:
[...]
Estou preso à vida e olho meus companheirosEstão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
Nós que nos dizemos progressistas devemos nos unir. Não é hora de nos beliscarmos ou estapear-nos. Devemos abrir mão de nosso preconceitos, semear ética e cidadania, nos ater ao que há de mais urgente e de precaver-nos contra a possibilidade de produzir fogo amigo. A mão que sustém a estátua de Cascudo representa a nossa.
Pouco podemos fazer, além de nos solidarizarmos com os que se dedicam a manter vivo o legado de Câmara Cascudo, principalmente Daliana. Como nós, ela e os demais se sentem impotentes diante de tal barbaridade.
- Gilberto Cardoso dos Santos
Nota divulgada pelo Instituto:
"Na qualidade de representantes legais do Ludovicus - Instituto Câmara Cascudo, instituição privada mantenedora do seu acervo e responsável pela preservação do seu legado cultural, vimos a público manifestar nossa mais profunda indignação diante da pichação feita na estátua de Câmara Cascudo que encontra-se em monumento localizado em frente ao Memorial Câmara Cascudo.
O ato de vandalismo expressa o total desconhecimento sobre a vida do homenageado e sobre sua obra repleta de brasilidade tendo por objeto de estudo o povo e todas as suas manifestações.
Por se tratar de prédio público cuja administração está a cargo da Fundação José Augusto, solicitamos aos mesmos que sejam adotadas medidas urgentes no sentido de recuperar os danos ao patrimônio histórico do Rio Grande do Norte.
Apoiamos a livre expressão de pensamento, mas repudiamos qualquer ato de vandalismo que venha a danificar bem histórico e macular a imagem de Luís da Câmara Cascudo."
- Daliana Cascudo, Neta do historiador e presidente do Instituto Câmara Cascudo
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É complicado... a inveja salpicando cores na estátua de um dos maiores folclorista do mundo. Meu pesar, primeiro à memória do RN, em seguida, à família do agredido. Não sei, mas ou esse ato foi articulado por uma pessoa que há muito nutre ódio de Câmara Cascudo, ou foi um vândalo inspirado na derrubada da estátua que a Rússia havia presenteado a Ucrânia. Nesses dias de total turbulência, tanto a nível nacional quanto longe das nossas fronteiras, ficamos estarrecidos com a nova onda de agressões contra a memória do nosso povo. A memória da paz perturba quem pensa em guerra, em quem tenta substituir a cultura das letra pela de tiros isolados, pela cultura do ratátátá, explosões e torturas. Andemos com cuidado. Os próximos podem ser vítimas de carne e osso.
ResponderExcluirParabéns a Gilberto por trazer à baila o assunto.
Heraldo Lins
Retificando: * ...ódio POR Câmara Cascudo...
ResponderExcluirHeraldo Lins
Outra: ...à Ucrânia...
ResponderExcluirHeraldo Lins
Ou seria ódio à Câmara Cascudo?
ExcluirHeraldo Lins.... regência é fogo!
Agora foi... O certo é Ódio a Câmara Cascudo... antes de nome masculino, sem crase...
ResponderExcluirGilberto respondeu à minha dúvida...kkkkk
Ótimo comentário, Heraldo. Obrigado e parabéns .
ResponderExcluirBelo texto, my old friend! Dia desses pintaram de preto a estátua de Iemanjá. Ontem, mais uma vez, roubaram os óculos da estátua de Drummond, no RJ. Esse nosso povo carece urgentemente de educação! - Nailson Costa
ResponderExcluirVerdade, amigo. Obg pela leitura.
ExcluirParabéns pelo texto, Gilberto.
ResponderExcluirCâmara Cascudo é o maior escritor do estado, o único que teve projeção fora até do Brasil.
E foi membro-fundador de várias instituições potiguares, como a Academia Norte Riograndense de Letras e a Faculdade de Direito.
Sim, ele não era perfeito, mas abriu muitas portas.
O próprio beco da lama só começou a ter a fama que tinha depois de ter sido visitado por ele e Mário de Andrade.
👍👏👏👏
ResponderExcluirAs mãos que violentam a memória cultural de uma coletividade não ficam na história. - José Luz
Que absurdo, é uma tristeza tanto vandalismo com a cultura, ainda mais com o Câmara Cuscudo. Conheci qd jovem que morava na rua Princesa Isabel na cidade Alta ,meu irmão que o amava ficava conversando com ele lembro muito, hoje não moro mais aí no RN, moro no Rio de Janeiro. Lamento profundamente espero que descubram quem praticou esta insanidade e que não fique impune!! Meus respeitos à memória. - Nair Bezerra
ResponderExcluirCÂMARA CASCUDO: O Intelectual e o seu Tempo...
ResponderExcluirAntes de qualquer coisa, parabeniza-se pelo o excelente texto da lavra gilbertiana, e, também, pelos autores dos comentários.
Câmara Cascudo foi um intelectual de seu tempo e começou a sua ação de pesquisador dentro de um projeto de identidade nacional: como Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Mário de Andrade e outros.
Pois, foi folclorista, historiador, memorialista, genealogista, cronista, literato, etc., nos anos 40, aqui na Província, já defendia a interpretação e a manifestação do FOLCLORE, e, participou ativamente do I Congreso Nacional do Folclore, em 1951, no Rio de Janeiro-RJ e juntamente com José Bezerra Gomes e Veríssimo de Melo.
Não se pode negar, que, a teoria de Nina Rodrigues, animava e era utilizada pelos intelectuais dos anos 20 e 30.
Quem for ler os textos cascudianos sobre a morte de Fabião das Queimadas, em 1928, publicado no jornal A República; Notas sobre os Escravos, em 1937, no Boletim de Ariel; e o prefácio do livro Cantadores, de Leonardo Mota, edição de 1978, percebe-se claramente as teorias de época.
Câmara Cascudo foi grande, vejam a quantidade de conteúdo de pesquisa, principalmente folclórica, sintetizados na sua bibliografia.
Mas, como um intelectual de seu tempo, nos anos 30, foi integralista, por favor, procurem ler o conteúdo dos livros do professor Luiz Gonzaga Cortez sobre o tema no Rio Grande do Norte.
Vale salientar, que, nessa mesma condição, foi Dom Hélder Câmara, José Calasans, Manoel Rodrigues de Melo, ...
Como Câmara Cascudo foi grande na contribuição cultural e histórica, virou signo, entre outros, o monumento situado no Centro histórico natalense. E foi pichado recentemente.
Na conjuntura atual, voltou à tona o debate político, com raízes nos anos 30, e, foi o combustível para ligar, o hoje, com a atuação política cascudiana daquele momento.
Fica claro, que, não se defende a maculação do monumento, que, representa o signo e a memória cascudianas.
Apenas, é uma singela opinião sobre o acontecido e não tem a pretensão de ser a verdade absoluta, tenta-se, somente, em teimar na interpretação das atitudes dos estratos da sociedade.
Verdade, Carlos Alberto. Obrigado por sua importante contribuição.
ExcluirExcelentes colocações sobre Câmara Cascudo e sua digna e imensurável representatividade para o RN e para o Brasil. Explicou e resumiu muitíssimo bem tudo.
ExcluirParabéns!