sexta-feira, 20 de agosto de 2021

O LOBISOMEM FAMILIAR - Heraldo Lins



 O LOBISOMEM FAMILIAR


_ Eu lhe dei tudo, gritou meu pai moribundo. Minha genética o transformou no poeta que tu és. 

Papai tinha razão. Apesar de não ter tido a oportunidade de conviver com ele como gostaria, hoje sei que sou seu herdeiro. A única herança que trago dentro de mim é a riqueza da sua inteligência. Sou grato por isso. Consigo permanecer amando alguém que não conseguia se mostrar no tempo da escassez. Ele precisava andar várias léguas para trazer, à noite, nossos mantimentos, quando muito, de quinze em quinze dias. Saía pela madrugada sem avistar os filhos acordados. Ficávamos imaginando como ele seria. Bonito, feio, gordo ou magro. Quando eu o avistava estava de um jeito. Na vez seguinte, mudava completamente. Quase irreconhecível a cada oportunidade. Nunca parava em casa. Minha mãe sempre dava à luz todos os anos. No pousar da feira, os meninos eram gerados.

 

Tudo minha mãe resolvia. Água em casa ela botava nas costas de Chá Preto, um jumento que me viu nascer, e eu, já crescido, o vi morrer. A lenha também. Éramos oito dando trabalho e trabalhando para não morrermos de fome. Castanha, lagartixa, calango, comíamos de tudo. Nas noites de agosto dormíamos amontoados na cama por falta de cobertores. Aproveitávamos o calor um do outro para não sofrer insônia causada pelo frio das madrugadas assobiadoras. 


Os uivos dos cachorros do mato nos assombravam. Quem não conseguia ter medo era Lucinha. Sempre atenta, quando acordava pela manhã já trazia um repertório de histórias assombradas que deduzia ter acontecido no alpendre de casa. Seus detalhes, a cada noite, nos fazia dependentes de sua imaginação. Dizia que escutava o lobisomem arranhar a porta atrás de quem desobedecesse a mãe. Lucinha era a irmã mais velha e a mais disposta a contar histórias. 


Minha mãe permanecia cuidando dos pequenos e açoitando nós maiores. Ficávamos apertando os olhos para dormir logo antes do lobisomem de Lucinha aparecer. Só deixávamos a cama quando mãe acordava. Eu nunca fiquei para ver a mula sem cabeça que Lucinha dizia vir toda noite namorar o lobisomem no terreiro. Ela pela manhã levava a gente para ver os rastros dos dois na areia fina do riacho. Segundo ela, era lá que eles planejavam as armadilhas para nos pegar.

 

Havia dias que mãe não deixava a gente dormir com ela. Era o dia de pai. Nesse dia, Lucinha tomava conta da gente. Ficava saboreando nossos olhos arregalados ouvi-la dramatizar suas novas histórias. Colocava almas penadas junto com Saci Pererê, e a caipora nunca deixava de pedir fumo para os passantes. Aí daquele que não desse. Levava uma surra de cabelos. A caipora tinha os cabelos arrastando no chão, dizia ela, e açoitava quem não lhe desse fumo.

 

Ela contava histórias cada vez mais tenebrosas. Sentia prazer em ouvir nossos suspiros de pavor. Eu, na minha santa ingenuidade, via todos os bichos que ela dizia que existia. Uma vez vi, mesmo em total escuridão, o lobisomem entrar lá em casa. Fiquei encolhido debaixo dos meus irmãos que já estavam dormindo. Lucinha, também, roncava. Eu não tinha por quem chamar para compartilhar meu pavor. Suava com medo de ele vir para o nosso quarto. Prendi a respiração. Fiquei sozinho ouvindo o Lobisomem entrar, sorrateiramente, no quarto de mãe. Ouvi barulhos diferentes. Rangidos da cama. Gemidos de mãe. O lobisomem estava atacando mãe. Enganei-me: era pai. 



Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 18/08/2021 – 15:26



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