sábado, 7 de agosto de 2021

O JOVEM VELHINHO - Heraldo Lins

 


O JOVEM VELHINHO 


Inventei de ser jovem. Instalei vários games no celular para ficar alienado ao mundo virtual. Joguei atirando em zumbis, mas desliguei o áudio porque eu morria sempre, e escutar a sonoplastia dos mortos-vivos me mastigando não é nada agradável.  


Em outro game de corridas eu batia em postes, árvores e pontes. Desisti dos jogos. Optei por ser ancião. Tudo nesse mundo das dores é lento. As pessoas contam uma piada e a gente só ri meia hora depois. Quando alguém me cumprimenta eu pergunto: quem é? Sou seu filho! A teima começa: eu não tenho filhos. São oito, papai. Nam... eu mesmo nunca me casei. E essa aqui? É minha enfermeira, inclusive, pode trocar por duas de trinta? 


Minha esposa só ri. Aliás ela passou a vida inteira rindo. Sabe que muitas das minhas faltas de memória é fingimento. Adoro fazer os outros pensarem que estou débil. Eles me visitam mais, trazem presentes, aqui e acolá eu arremesso um prato neles para garantir minha insanidade. Vai que eu vacilo e demonstro que estou são, nunca mais eles pisam aqui em casa.


Ontem vi a empregada tomando banho. Ela nem se importou. Eu fingia estar disperso, e quando ela se abaixava para pegar o sabonete, eu, rapidamente, limpava o ralo. Ela gosta da minha criatividade. A estratégia foi manter-me calado e ela cantando, por isso, há cumplicidade e certeza que não haverá flagra. Eu que sempre sonhei com esses momentos, agora chegam aos montes. Basta estarmos sozinhos que a brincadeira começa.  


Esse papel meu de senil está dando certo. Arranjaram duas meninas para me dar banho. Que delícia. Finjo que não sei me lavar. Elas fazem por mim. Só não gosto é do dedo escorregadio. Mas vale o sacrifício.      



Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20/05/2021 – 13:31




5 comentários:

  1. Dei boas risadas, Heraldo. Muito bom. - Gilberto Cardoso dos Santos

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    1. Obrigado Gilberto. O anti-heroi é sucesso, que o diga Miguel de Cervantes.

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  2. Excelente. Muito legal mesmo: coisa de quem há muito faz humor com muita criatividade.
    Parabéns, Heraldo Lins, homem inteligente da "Terra da música".

    João Maria de Medeiros Dantas

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    1. Obrigado João Maria. Realmente meu pai é de Carnaúba dos Dantas. O humor que me inspiro é o de Luiz Fernando Veríssimo. Meu sogro disse que eu era quenguista, antigamente a pessoa inteligente era conhecida por quenguista. Quando menino diziam que eu era doido, inteligente aqui acolá escuto. Quando fui casar meu sogro disse a minha esposa: dizem que ele é fraco... E assim vai. Obrigado pelo inteligente.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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