domingo, 14 de fevereiro de 2021

É CAIXÃO - Heraldo Lins



 É CAIXÃO



Fiquei durante um ano em coma e nem sabia que o coronavírus existia. Agora que acordei me disseram que eu caí doente desse mal. Estranho! Nada ficou registrado em meu cérebro. Parece que estacionei em um planeta distante da via láctea. Tudo aqui mudou bastante desde quando apaguei. Agora ninguém pode mais dançar em festas, carnaval não existe...  não sei se valeu a pena despertar. Lá eu estava tranquilo, vendo tudo por trás de uma névoa espessa. Agora tenho que usar três máscaras: uma para o vírus, outra de sorrir e outra de chorar. O mundo transformou-se e eu não acompanhei essas mudanças. Sinto-me um peixe fora d’água morrendo de curiosidade. Soube que fizeram uma vacina e por ela muita gente está brigando. Até uma enfermeira disse que o auge da sua carreira foi ser escolhida para aplicar a primeira dose. Ela deve bem guardar as fotos, os vídeos e reportagens... Na escola  o menino vai se vangloriar: sou neto da mulher que aplicou a primeira vacina. A família dela já se mudou para um condomínio de luxo. Ela foi até convidada para conceder entrevistas, inclusive, liderar um programa televisivo. O título do programa vai ser: “a sua primeira vez”. Entrevistará os pedreiros para saber quando foi o primeiro tijolo assentado... perguntará ao padeiro quando fez o primeiro pão...  terá muita gente para entrevistar, até porque todos tivemos várias primeiras vezes. A primeira namorada, o primeiro beijo, quando comeu a primeira tapioca molhada... 


Estou comemorando também o meu sucesso. Eu trabalho como coveiro, e o auge da minha carreira está sendo enterrar gente em cova feita por retroescavadeira. Antigamente eu enterrava dois por semana. Agora são mil por dia. Vou falar com o administrador do cemitério para colocar hora extra no meu salário. Estamos lutando, nós do sindicato dos coveiros, para ganharmos por produção. Já fiz as contas: dez reais por pessoa, irei ganhar trezentos mil reais por mês. Um salário verdadeiramente digno de um coveiro. 


Já fui contactado pela enfermeira para falar sobre meu primeiro enterro. Eu sempre sonhei em contar a minha experiência, e com esse covid-19 a chance de ser visto aumentou muito. Já tenho um canal nas redes sociais onde sou seguido por mortos e vivos.  Os vivos sempre participam comentando minhas postagens, porém os mortos ficam observando e nada dizem. Conheço um morto de longe. Morre e se esquece de falar comigo. Vivem perambulando por aí sem rumo e sem prumo. O morto é identificado pela mania de correr atrás dos vivos. Se um vivo faz um comício, lá vai o morto atrás; se há promoção, mesmo não estando precisando do objeto, ele compra no crediário; um prato de cuscuz, posta no Instagram. Procura de toda maneira ressuscitar. 


Quando eu estiver sendo entrevistado irei fazer o lançamento do meu programa de televisão. Ele será direcionado aos meus futuros clientes, ou seja, a todos os viventes. Irei dar dicas de não morrer de madrugada, nem aos domingos. No primeiro caso os da família perdem o sono e chegam ao cemitério reclamando: esse infeliz, além de morrer ainda nos acordou... os parentes também resmungam aos domingos: estragou nosso churrasco... deixasse para morrer no final da festa... e ainda: cave a cova pinguço, que lhe dou uns trocados. É assim que eles me tratavam. Além de me chamar de beberrão, nem queriam apertar minha mão. O coronavírus veio mostrar nosso valor. Agora é só live.



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 11.02.2021 - 08:25

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