NO TEMPO
QUE EXISTIA SOMENTE A VERDADE
O céu vai mudar de cor? As estrelas vão cair? A lua
fica ou sai? Essas eram as minhas perguntas quando diziam que o ano novo seria
amanhã. Acreditava que o céu à noite deixaria de ser preto. Que no outro dia
minha casa seria transformada em um palácio. Meus pais seriam outras pessoas.
Tudo mudaria com a passagem de ano. As explosões comemorativas, eu escutava
deitado. Não me levantava da rede porque diziam: criança que testemunhar o ano
morrer... morre junto com ele.
Acreditava em tudo que me contavam. Não conhecia ainda a mentira.
Minha decepção era no outro dia. Tudo continuava do
mesmo jeitinho. Olhava para o céu, logo cedo, para ver se enxergava alguma
diferença. O sol escaldante continuava lá. Vá buscar água! Mãe mandava. Com o
galão nas costas prestava atenção se pelo menos os carrapichos haviam sumido.
Mas não! Eles continuavam me espinhando quando eu saía da trilha. Se pelo menos
os marimbondos da cacimba morressem, já era muito bom. Melhorava bastante. Eles
nem percebiam que o ano havia terminado. Continuavam lá voando atrás de quem
invadisse a poça d’água. As latas eram transformadas em escudos contra esses
insetos. João Paçoca foi picado e está com o rosto inchado. Deu febre e não
veio. Pela manhã encontraram um cururu estraçalhado pelos guaxinins aqui bem
pertinho. Esse era o teor do informativo da cacimba. Sem televisão, igualava-se
hoje ao jornal nacional.
Quase não se encontrava água quando as lavandeiras
resolviam trabalhar. Água não, mas briga tinha de sobra. Zefa brigou porque
Creuza deu um chute na lata. As duas caíram dentro da cacimba puxando os
cabelos. Foi brigão. As outras lavandeiras deixaram o sabão e vieram gritar de
cima do buraco. Esses relatos transformavam nosso sofrimento em algo curioso.
Ficávamos atentos para não perder os acontecimentos. Quem não fosse à cacimba
estaria desinformado. Fernando foi preso. Correu atrás das filhas de Tereza no
caminho do cemitério. Elas vinham com a trouxa na cabeça e ele aproveitou. Além
de doido, tarado. Também elas andam mostrando tudo... Fernando não suportou a
pressão dos hormônios. Agora elas vão acompanhadas com o irmão menor. Ele leva
o estilingue. Pode meter pedra se ele aparecer. Atire e corra para casa. Venha
me chamar, instruiu a mãe barraqueira.
A cacimba era o ponto de encontro. As pessoas
colocavam a conversa em dia enquanto esperavam sua vez de encher latas e
barris. Conheci os super-heróis na cacimba. Quintino pega duas latas d’água...
sozinho! Ali tem força! Juvenal daquele tamanho já consegue levantar o barril e
colocar no burro. Parecia que estávamos numa olimpíada. Vamos ver quem chega
primeiro na sombra do cemitério? Além de longe uma ladeira. O esgotamento era
total. Dez da manhã não existia sombra. Para descansar seria até nove.
Na ida para a cacimba também existia correria. As
latas eram quem sofriam as pancadas. De dentro do quadrado de madeira furado, a
água brotava lentamente. Chegar primeiro era crucial. Quem chegasse depois,
esperava. A cacimba tinha pouca vazão. Naquela cidadezinha sem água encanada,
muitos viviam de água de ganho. Havia uns sobreviventes que cavavam a própria
cacimba. Podíamos tirar água de lá, mas quando o dono chegava com seu tambor,
afastávamos para que não perdesse tempo. Zé Tacaca também era outro admirado na
freguesia. Sem um braço, entrava correndo pelo portão estreito da escola
equilibrando sua carroça ladeira abaixo. Vangloriava-se disso. Um dia faltou o
costumeiro malabarismo. O tambor de duzentos litros inchou. Zé tacaca perdeu o
título de malabarista.
Meu sonho era tomar banho de chuveiro. Providenciei
uma lata furada. Enchia e amarrava nos caibros do banheiro. Só que furei com um
prego muito grosso. Antes de começar o banho a água já havia vazado toda. Que
frustração. Só em falar já fiquei estressado.
Heraldo Lins
Marinho Dantas (arte-educador)
Natal/RN,
28/12/2020 – 16:55
84-99973-4114
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