quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

NO TEMPO QUE EXISTIA SOMENTE A VERDADE - Heraldo Lins

 



NO TEMPO QUE EXISTIA SOMENTE A VERDADE

 

 

O céu vai mudar de cor? As estrelas vão cair? A lua fica ou sai? Essas eram as minhas perguntas quando diziam que o ano novo seria amanhã. Acreditava que o céu à noite deixaria de ser preto. Que no outro dia minha casa seria transformada em um palácio. Meus pais seriam outras pessoas. Tudo mudaria com a passagem de ano. As explosões comemorativas, eu escutava deitado. Não me levantava da rede porque diziam: criança que testemunhar o ano morrer...  morre junto com ele. Acreditava em tudo que me contavam. Não conhecia ainda a mentira.

 

Minha decepção era no outro dia. Tudo continuava do mesmo jeitinho. Olhava para o céu, logo cedo, para ver se enxergava alguma diferença. O sol escaldante continuava lá. Vá buscar água! Mãe mandava. Com o galão nas costas prestava atenção se pelo menos os carrapichos haviam sumido. Mas não! Eles continuavam me espinhando quando eu saía da trilha. Se pelo menos os marimbondos da cacimba morressem, já era muito bom. Melhorava bastante. Eles nem percebiam que o ano havia terminado. Continuavam lá voando atrás de quem invadisse a poça d’água. As latas eram transformadas em escudos contra esses insetos. João Paçoca foi picado e está com o rosto inchado. Deu febre e não veio. Pela manhã encontraram um cururu estraçalhado pelos guaxinins aqui bem pertinho. Esse era o teor do informativo da cacimba. Sem televisão, igualava-se hoje ao jornal nacional. 

 

Quase não se encontrava água quando as lavandeiras resolviam trabalhar. Água não, mas briga tinha de sobra. Zefa brigou porque Creuza deu um chute na lata. As duas caíram dentro da cacimba puxando os cabelos. Foi brigão. As outras lavandeiras deixaram o sabão e vieram gritar de cima do buraco. Esses relatos transformavam nosso sofrimento em algo curioso. Ficávamos atentos para não perder os acontecimentos. Quem não fosse à cacimba estaria desinformado. Fernando foi preso. Correu atrás das filhas de Tereza no caminho do cemitério. Elas vinham com a trouxa na cabeça e ele aproveitou. Além de doido, tarado. Também elas andam mostrando tudo... Fernando não suportou a pressão dos hormônios. Agora elas vão acompanhadas com o irmão menor. Ele leva o estilingue. Pode meter pedra se ele aparecer. Atire e corra para casa. Venha me chamar, instruiu a mãe barraqueira.

 

A cacimba era o ponto de encontro. As pessoas colocavam a conversa em dia enquanto esperavam sua vez de encher latas e barris. Conheci os super-heróis na cacimba. Quintino pega duas latas d’água... sozinho! Ali tem força! Juvenal daquele tamanho já consegue levantar o barril e colocar no burro. Parecia que estávamos numa olimpíada. Vamos ver quem chega primeiro na sombra do cemitério? Além de longe uma ladeira. O esgotamento era total. Dez da manhã não existia sombra. Para descansar seria até nove.

 

Na ida para a cacimba também existia correria. As latas eram quem sofriam as pancadas. De dentro do quadrado de madeira furado, a água brotava lentamente. Chegar primeiro era crucial. Quem chegasse depois, esperava. A cacimba tinha pouca vazão. Naquela cidadezinha sem água encanada, muitos viviam de água de ganho. Havia uns sobreviventes que cavavam a própria cacimba. Podíamos tirar água de lá, mas quando o dono chegava com seu tambor, afastávamos para que não perdesse tempo. Zé Tacaca também era outro admirado na freguesia. Sem um braço, entrava correndo pelo portão estreito da escola equilibrando sua carroça ladeira abaixo. Vangloriava-se disso. Um dia faltou o costumeiro malabarismo. O tambor de duzentos litros inchou. Zé tacaca perdeu o título de malabarista.

 

Meu sonho era tomar banho de chuveiro. Providenciei uma lata furada. Enchia e amarrava nos caibros do banheiro. Só que furei com um prego muito grosso. Antes de começar o banho a água já havia vazado toda. Que frustração.  Só em falar já fiquei estressado.    

 



 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 28/12/2020 – 16:55

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