NÃO
LEIAM... É PESADO E NOJENTO
Ontem foi fantástico. Amanhã
também será. O hoje eu não posso dizer nada porque faz parte da minha
realidade. Dois a um. Minha ilusão me acompanha. Hoje tenho três refeições
programadas, algumas idas ao banheiro e um sono agendado para a noite. O resto
do tempo é utilizado para vigiar o próprio tempo. Não tenho problemas com ele.
Deixo ir seguindo seu rumo sem rumo, e tudo está bem. Às vezes vou de carona e
fico fazendo um registro dos fatos que caminham lado a lado. Posso ficar parado
meditando e ele, como um rio, traz o envelhecimento para perto. Não esquece de
jeito nenhum. Disfarço com atividades jovens, mas ele aplica, sutilmente, a
injeção do desgaste. A mente vai junto. Aqui acolá perde um pouco a memória, e só
percebe que o tempo passou quando procura nos seus arquivos algo para se
lembrar e não encontra. O corpo fica testemunhando uma nova ruga nova, uma dor lacrimejante...
são alertas de que o tempo está me levando. No vagão estou eu, está você. É
como se fôssemos para um campo de concentração. Calados, sisudos, mas indo. Não
adianta se rebelar. Ele leva a infância, juventude e a vida adulta para a beira
do abismo. Olhamos... observamos e esperamos receosos qual dia teremos que pular
no precipício. O corpo passará para além da carne, mas ficará dentro do padrão temporal.
Lá terá um tratamento diferenciado. Esses olhos que estão lendo irão apodrecer.
As suas e as minhas mãos ficarão cheias de vermes comendo a carne. Chegou minha
vez de pular...
O nariz arrombado sem sentir
cheiro. Da minha boca os vermes saindo engordados com carne de lábio. Minha pele,
tantas vezes com hidratante para protegê-la do sol, agora não há como. A roupa
que foi comprada no exterior serve para cobrir carniça. Aquela camisa que me deixou angustiado quando caiu um pingo de café, hoje os pingos são da lama podre de cemitério.
A quentura da terra em cima da cabeça faz os cabelos degenerarem-se. Muitas
vezes penteado com esmero e lavado com produtos perfumados estão desalinhados,
quebradiços e cheios de vermes digerindo-os.
O sangue parado com seu odor
inconfundível, alastra-se chamando outros seres para o banquete. Muitas
formigas no buraco dos olhos fizeram moradia. No ouvido sai uma minhoca e seus
filhotes. Estava parindo no que antes era tratado por um otorrino.
Lá em cima da cova alguém
acende uma vela. Aqui embaixo é só escuridão e umidade. Escuto choro ao redor
da vela. Não chorem por mim, tento gritar. Chorem por vocês mesmos que irão
também passar por isso. Se não quiserem viver este infortúnio, peçam em vida
para queimarem seus restos mortais. Levem sua morte para outro lugar.
Chegou o pessoal da
marmoraria. Estão colocando uma lápide com meu nome. Estou sendo o motivo do
ganha pão deles. Não preciso de
enfeites! Os funcionários não escutam meus gritos. Reclamam do sol quente. Estou
aqui sem que minhas reclamações sejam ouvidas. Como gostaria de trocar de
lugar. Meus feitos nada mais valem. Testemunho, literalmente, cada pedaço sendo
arrancado do meu corpo. Os vermes me fizeram refém. Apenas observo,
passivamente, o banquete sendo feito. A comida sou eu. Alguns estão entrando
nos ossos. Faz cócegas quando comem a medula. Este não é o momento para rir.
Mas rio assim mesmo. É a continuidade da vida.
O canal da uretra está sendo
usado como metrô. A cada momento chegam mais desembarcando nos testículos. São trabalhadores
da degeneração. Trazem apenas a boca como ferramenta. Suas marmitas estão
disponíveis no próprio trabalho. No horário de folga trazem os filhotes para
pular no tobogã do umbigo. Fizeram um complexo aquático na bexiga. Um túnel e
uma trilha no intestino delgado para acessar o estômago. Eles estão adorando
comer meu fígado. É fácil de digerir. A mesma textura do caqui. O meu cérebro
permanece se deteriorando... já comeram metade dele. Sinto que não consigo
raciocinar normalmente. As palavras me faltam. Estão mastigando a paRte motOra resPonsÁvel pEla DigItaÇão... nÃo estou ConsEguiNdo digitar diReiTO.
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Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)
Natal/RN, 25/12/2020
07:53
84-99973-4114
Crônica de temática asquerosa, tão boa quanto um soneto de Augusto dos Anjos. - Gilberto Cardoso dos Santos
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