O ABECÊ DA DOUTORA - A vida de Valdenides num folheto de cordel
(Autores: Valdenides Cabral e Gilberto Cardoso dos Santos)
A
Aqui fala Valdenides
De sobrenome Cabral
São José do Sabugi
É minha terra natal
Sou filha do Seridó
Residi em Caicó
Distante da capital.
B
Bem verdade é que Deus dá
Somente um verso ao poeta
E ao restante do poema
É o diabo quem completa
Vou contar a minha história
De poesia e vitória
Com o diabo longe meta.
C
Como me tornei poeta
De mim mesma me perdi
E um dia, lá nas cacimbas
Do meu velho pai ouvi
“Tome tento na subida
Pois é íngreme a descida
Faça como a adverti.”
D
Disse: “Evite escorregar
Pois o erro é doloroso
Só Jesus Cristo desceu
E subiu vitorioso
E quando no céu chegou
Feito Deus comemorou
E disse todo manhoso:”
E
“Enquanto estive na Terra
Muita coisa sucedeu
Mas no meio dos enganos
Meu poder prevaleceu
Nem mesmo na minha infância
Pratiquei alguma errância
Por isso lá mando eu!””
F
Foi meu pai, sábio nas coisas
Da Terra e do Céu também
Que queria que eu vivesse
Da maneira que convém
Pra tudo quanto dizia
Orientava ou pedia
Queria ouvir meu amém.
G
Gentil às vezes, queria
Que eu fizesse um juramento
De perder a virgindade
Somente no casamento
Ou, pra não ser rapariga
Nesse mundão duma figa
Que eu entrasse num convento.
H
Honrada eu devia ser
Rezar, pedir oração
E não viver nessa vida
Entregue à corrupção
Pra não virar pecadoraE cair na perdição.
I
Idílico, cantarolava
Versos para me ninar
E me mostrava as princesas
E os príncipes d’além mar:
E eu dormia sonhando
Tanta coisa imaginando
Que não quero nem lembrar.
J
João Evangelista eu via
No Pavão Misterioso
Que levantou voo da Grécia
No seu transporte engenhoso
Princesa da Pedra Fina,
De Magalona e Porcina
Na voz do pai cuidadoso.
L
Lembro que escrevi uns versos
E botei meu pai pra ler
Ele os chamou de coisas
E me mandou refazer
Disse assim: “Faça cordel
Seja à métrica fiel
Sem das rimas esquecer.”
M
Mas não fiquei desgostosa
Ao ver o seu desprazer
Pois conhecia o meu velho
E esse seu jeitão de ser
Na sua simplicidade
Mostrava sinceridade
Jamais tentou me ofender.
N
Não deixei de ser poeta
Apesar da frustração
Poetizando sem rima
E sem metrificação
Meu velho não entendia
Pois cordel não parecia
Eram versos sem noção.
O
O tempo me deu uns príncipes
Do reino da poesia
E princesas da palavra
Gente que me comovia
Gilberto Mendonça Teles
Também Cecília Meireles
Quintana me divertia.
P
Perdi-me, mas me encontrei
Na poética de Alfonsina
De Zila, Diva, Marize
Hilda, Lígia e Marina
Conceição, Adélia Prado
Poetas do meu agrado
Cuja escrita me fascina.
Q
Quando um João, não o Evangelista
Que também era Cabral
Me conduziu às alturas
Com a poética original
Não de cordel, certamente
Cheio de rima aparente
Senti algo especial.
R
Radiante, achei na prosa
A essência da poesia
Cortázar me fez alada
Com as penas da fantasia
Vi-me uma Alice no espelho
E ao conversar com o coelho
Achando-me, me perdia.
S
Somente nas poesias
Ao meu pai não agradei
Graças aos livros que li
Professora me tornei
Íngreme foi a jornada
Mas eu me tornei prendada
E no lar me recatei.
T
Tive o prazer de encontrar-me
Na função de educadora
Asas de livros abertos
Me tornaram pós-doutora
Hoje, já aposentada
Professora e mãe amada
Sinto que fui vencedora.
U
Uns cordéis de carne e osso
Ainda pude fazer
Rimados, metrificados
Como deveriam ser
A minha filha e meu filho
Aos meus olhos trazem brilho
E desejo de viver.
V
Vou aos trancos e barrancos
Com medo de escorregar
Dizendo Madadayô,
Mandando o fim se afastar
Prossigo de fronte erguida
E até o ocaso da vida
Eu quero poetizar.
X
Xucra ao tracejar meus versos
Na brancura do papel
Ainda quero um poema
À rima e à métrica fiel
Repleto de poesia
Que caiba na melodia
Da voz de um bom menestrel.
Z
Zelosa em tudo que faço
Quero ter um ABC
Que agradaria a meu pai
Como o que agora lê
Um resumo da existência
Aninhado na cadência
Completo, de A a Z.
o primeiro verso
e o Diabo responde pelos outros,
vou contar a vocês a minha história,
que por ser tão cheia de vitórias,
dispensei a ajuda do segundo,
para traduzir no meu verso
o dia que me perdi de mim
pra ser poeta.
Um dia, lá longe, nas Cacimbas,
onde se perdeu a minha infância
ouvia meu pai dizer
tome tento na subida
porque o que dói nas errâncias,
neste mundo de Meu Deus,
é a íngreme descida
que só o Grande desceu.
cheio da empáfia dos Deuses,
dizendo todo manhoso
que lá “também mando Eu”.
Meu pai sabendo das coisas
da Terra e do Céu também,
fez-me fazer juramento
que neste mundão de uma figa
não virasse rapariga.
Melhor viver num convento,
rezar, pedir oração,
pra não virar pecadora
nem ser uma sofredora
como as que o mundo já tem.
Cantarolava seu versos
como canção de ninar
E me mostrava as princesas
e os príncipes d’além mar:
o João Evangelista,
do Pavão Misterioso
Princesa da Pedra Fina,
Magalona e Porcina
e eu dormia sonhando
com Castelos e feitiços,
que não quero nem lembrar.
E quando escrevi meus versos
E meu pai chamou de coisas,
Mandou logo refazer: faça cordel
Que é meu gosto.
Se não conhecesse o velho
E o seu jeitão de ser,
Tinha sentido desgosto.
E fui crescendo na vida
Conhecendo outros príncipes
Desses que escrevem livros,
Me deixando dividida:
Bandeira, Quintana, João,
Cabral que nem eu, por certo...
Depois um tal de Gilberto
Que tocou meu coração.
Também conheci princesas:
Lígia, Clarice, Marina,
Hilda, Cecília, Adélia,
Zila, Diva e Marize,
Todas livres, acenando
pros versos que ainda não fiz.
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