segunda-feira, 24 de junho de 2019

DEMOCRACIA EM VERTIGEM: Um documentário que explica o Brasil recente.


Indico esse documentário como uma análise lúcida do que ocorreu na história recente deste país.

Como historiador da humanidade me faz notória sempre a necessidade de se evitar amnésias voluntárias. Esquecimentos são perigosos em todos os aspectos da vida social humana, tendo em vista que o esquecimento dos erros cometidos abre o precedente para que os mesmos venham ser repetidos. O Brasil é um país construído sobre esquecimentos propositais. Esqueceram-se dos índios, verdadeiros donos deste território, esqueceram-se dos criollos; os nascidos aqui, miscigenados que passaram a ser tratados como escórias ainda na colônia, esqueceram-se do passado de escravização de seres humanos e o quanto este aspecto influencia a sociedade atual.  

O Brasil nunca conseguiu substancialmente ser uma Democracia, afinal o modelo social que persiste em nosso meio é o Engenho Colonial. A elite na Casa grande tem como tarefa manter o sistema em vigor e o atraso social temperado pela separação justaposta em relação a senzala. Os donos do engenho, da indústria, do meio de produção fazem questão de controlar o ritmo produtivo e a persistência de seus privilégios. A Escravidão foi legal por mais de 350 anos e quando foi abolida nada foi feito para reparar este dano às populações antes escravizadas e que agora carregavam o estigma. Esqueceram-se da escravidão, mas não esqueceram que o negro um dia tinha sido escravo, eles sempre fizeram questão de lembrar.

Para entender a história recente do Brasil é preciso compreender que todos aqueles que lutaram no sentido de tentar exercer as lembranças, redistribuição de direitos e das riquezas deste país, foram vilipendiados pela elite do atraso. Quem buscou lembrar-se dos esquecidos sempre virou alvo. No documentário “Democracia em vertigem” (Netflix), da cineasta Petra Costa podemos contemplar a ascensão do grupo político que, mesmo com suas contradições, equívocos e retrocessos discursivos, foram os únicos que desejaram reequilibrar as desigualdades que foram sempre potencializadas por aqui. Podemos conhecer a primeira ocasião em que a elite viu a senzala caminhar em direção aos mesmos espaços que ela transitava; aspecto que impressionou uns, mas irritou freneticamente outros. Contudo, o detalhe mais significativo é que a Petra nasceu na Casa Grande, neta de um dos maiores empreiteiros do país e que pôde transitar pelos azulejos dos salões do alto, mas com perspicácia e consciência social teve sensibilidade de examinar o aspecto desumano de todo o processo. Ela narra a descoberta do absurdo por quem em parte acreditava que os golpistas queriam o bem do Brasil em 1964 e reúne fatos e evidências para mostrar porque apoiaram a eleição de Dilma em 2014 e choraram o Golpe institucionalizado de 2016.  Indico esse documentário como uma análise lúcida do que ocorreu na história recente deste país. Eu acredito que muitos relatos e cenas apresentadas no documento serão novidade para você, sobretudo porque a grande mídia também teve participação na tentativa de produzir novos esquecimentos, embora os fatos narrados não estejam nem 3 anos distantes. Prometo que é uma experiência agregadora e esclarecedora.


Historiador, pesquisador, professor e escritor, autor de
Cícero Justino Arco Iris de Uma Vida - Cantorias, Lugares e memórias de um repentista.

XEXÉU QUIXOTE E SEU ESCUDEIRO GELSON PANÇA - Gilberto Cardoso dos Santos


XEXÉU QUIXOTE E SEU ESCUDEIRO GELSON PANÇA

Sempre admirei a relação respeitosa de Gélson Luís Pessoa com o poeta Xexéu.  Gelson soube reconhecer a grandeza poética de João Gomes Sobrinho e o escolheu como mestre. Sem dúvida foi uma  escolha mutuamente lucrativa, pois em Gelson Xexéu encontrou o melhor de seus discípulos.

Semelhante aos escribas da antiguidade, que se punham a registrar as preciosas palavras de filósofos e rabinos - tal como Paulo aos pés de Gamaliel - Gelson voluntariamente ouvia os sábios versos entesourados na prodigiosa memória e os registrava no papel. Posteriormente, os digitalizava. Tudo isso requeria tempo, dinheiro, deslocamento e paciência, mas Gelson jamais recuou da missão que impusera  si mesmo. O eterno aprendiz se comparou a Sancho Pança seguindo Dom Quixote. Quem acompanhou os esforços feitos por ele e se convenceu da genuinidade de seu respeito e admiração; quem, como eu, conhece a fundo a história do Cavaleiro Andante e seu fiel escudeiro, depressa percebe a pertinência da analogia.

Foram anos, quiçá décadas, de dedicação quase incondicional à causa do inspirado guia. Batalhava para que seus cordéis fossem publicados; promovia eventos em sua homenagem; não esquecia de suas datas natalícias; na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza", fez-se presente e, por fim, juntamente com Marcos Medeiros - outro escudeiro de Xexéu - realizou o sonho de ver um livro dele publicado.
Se é verdade que anjos se acampam ao redor dos seres humanos, não tenho dúvida que um dos anjos de Xexéu chamava-se Gelson Pessoa.

Poucos sentiram tão profundamente a sua morte quanto ele. Ligou para mim em 29 de maio para dar-me a fatídica notícia. Dias antes ligara  convidando-me para o aniversário de 80 anos e contrastante era o modo como agora falava.  Recente fora a publicação de seu livro; os recursos arrecadados seriam utilizados para reformar a casa/gaiola do pássaro humano.

O fã incondicional, dando admiráveis sinais de humildade, gratidão e reconhecimento, buscou expressar em versos o que sentia pelo Vate das Lajes e daí nasceu o  cordel "Sendo Xexéu Dom Quixote Seu Sancho Pança eu seria":


Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria
Gélson Pessoa

Santo Antônio é a cidade
Que com certeza tem sorte
De ter um filho ilustre
Xexéu um poeta forte
Que hoje é Patrimônio
Do Rio Grande do Norte.

Ele é Patrimônio Vivo
Que nos causa alegria
Um poeta que escreve
Com muita sabedoria.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Ewerton Lemos falou
Numa conversa outro dia
Xexéu sendo Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.
Então eu observei
Que isto aconteceria.

Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria
Pois acompanho seus passos
Com a maior alegria
Sem o seu ensinamento
Lhe digo neste momento
Poeta eu não seria.

No caminhar cultural
Encontrei Xexéu um dia
E tive a felicidade
De ter sua companhia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Caminhando com Xexéu
Eu formulei parceria
Porque ele me ensina
A versejar todo dia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

De Xexéu sou aprendiz
No ramo da poesia
Ele me ensina sua arte
Com a maior maestria.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Enveredei com Xexéu
No mundo da fantasia
E aprendi muitas coisas
Que antes eu não sabia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Lendo versos de Xexéu
Era como eu aprendia
E hoje Xexéu já ler
Versos da minha autoria.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Xexéu me deu seu aval
Quando leu minha poesia
Eu todo lisonjeado
Ouvia o que ele dizia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Depois que avaliou
Meu verso e minha poesia
Xexéu então me falou
Que meu verso tem valia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Com a sua avaliação
Aí eu vi que podia
Fazer verso de cordel
Do jeito que eu queria.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Quando xexéu improvisa
Parece trazer magia
Palavra na sua boca
Se transforma em poesia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Eu fico admirado
Xexéu fazendo poesia
Eu comparo com Beethoven
Fazendo uma sinfonia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Com Xexéu eu aprendi
Fazer boa poesia
Mas com este professor,
Quem é que não aprendia?
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Para ser seu Sancho Pança
Tenho que ter parceria
Eu encontrei em Xexéu
O Amigo que eu queria.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Xexéu no seu alazão
Tendo a musa como guia
Eu montado num jumento
Sendo a sua companhia.
Sendo Xexéu Dom Quixote
Seu Sancho Pança eu seria.

Xexéu é o Dom Quixote
Que Wetinho me dizia
E eu sou o Sancho Pança
Dentro da minha poesia.
Se Xexéu é Dom Quixote
Sou Sancho Pança hoje em dia.

 Parabéns a Gelson pelo importante trabalho desenvolvido até agora. Que continue a crescer junto e a promover mais e mais o nome deste que, indiscutivelmente, foi um dos maiores nomes da poesia popular nordestina.

Gilberto Cardoso Dos Santos - Santa Cruz, 25.06.2019


terça-feira, 18 de junho de 2019

GALOPE À BEIRA-MAR (José Alves Sobrinho)

Você se deliciará  com um dos mais extraordinários poemas de José Alves Sobrinho; Ao lê-lo, entenderá  melhor a razão de meu amor por este livro, o Sabedoria de "caboco". Trata-se de um galope por excelência que nos dá um claro vislumbre da genialidade do autor. Não poderia deixá-lo de fora nesta busca por resgatar o que Zé Alves Sobrinho nos deixou de melhor.   Gilberto Cardoso Dos Santos



GALOPE À BEIRA-MAR (José Alves Sobrinho)

O mar é um príncipe muito bem trajado
Que vem galopando em busca da praia,
As ondas são finos coxins de cambraia
Que ornam o corcel do príncipe sagrado,
A praia é uma virgem de olhar levantado
Esperando o noivo que tem de chegar,
O vento é um pajem que vem avisar
A noiva do mar que está esperando
O príncipe marinho que já vem chegando
Pra casar com ela na beira do mar.

O mar é famoso, bonito e elegante,
Afoga em seu bojo o rosto da Lua,
No verde das águas o vento flutua
Balançando o corpo do grande gigante
Que se movimenta num embalo constante
Subindo e descendo, sem nunca parar,
A praia o espera no mesmo lugar,
Sem temer a fúria do monstro orgulhoso
Que vem resmungando, ciumento e queixoso
Dar-lhe umas palmadas na beira do mar.

É belo escutar-se da onda o barulho
Em seu movimento sacudindo as brumas,
E o mar estremece jogando as espumas
Recua e avança com força e orgulho,
Levando arrecifes, tangendo vasculho,
Limpando o caminho de Deus viajar,
Se a Lua estiver no espaço a  brilhar
Parece uma virgem de “cabelo louro”
Ou então uma bola maciça de ouro
Saindo de dentro das águas do mar.

A onda é bonita naquele vaivém,
Tem onda pequena, tem onda que cresce,
Tem onda que sobre, tem onda que desce,
Tem onda que vai, tem onda que vem,
Tem onda cansada porque não mais tem
Talento na água pra areia alcançar
Mas sente outra onda por trás a empurrar
E ela se ergue depois de empurrada
Aquela que empurra cai também cansada
E as duas se acabam na beira do mar.

As ondas são finos lençóis de cambraia
Bordados de rendas, de franjas e bicos,
Bem feitos, bem alvos, bem limpos e ricos
Que os ventos marinhos estendem na praia,
Aquilo é bonito que a vista desmaia,
E o homem contente fica a contemplar
A onda investir e depois recuar
Jogando pra fora ostras e mariscos,
Pequenas pedrinhas, retraços e ciscos
Que as vagas arrancam de dentro do mar.

É belo da praia avistar-se um navio
Travessando a costa na sua carreira,
Parece um gigante de ferro e madeira
Enfrentando o mar no seu desafio,
No verão, no inverno, no outono, no estio
Flutuando na água sem nunca afundar,
De popa, de proa, de velas no ar,
Soltando canudos de fumo azulados,
Seus mastros parecem braços levantados
Saudando a quem fica na beira do mar.

Na beira do mar vemos coisa boa
E melhor se torna no tempo do estio,
Barcaça, canoa, paquete, navio,
Paquete, navio, barcaça, canoa,
Ali também vemos mais de uma pessoa
Andando no cais querendo embarcar,
E o grande navio a se balançar,
Saudoso apitando desliza nas águas
Deixando saudades, tristezas e mágoas
Naqueles que ficam na beira do mar.

A terra é esposa, o mar é marido,
A terra trabalha, o mar é guerreiro,
A terra produz, previne o celeiro,
Esperando a volta do esposo querido,
E quando ele vem do desconhecido
Ela vai à praia para o esperar,
Quando ele a avista levanta o olhar,
E logo se olham, sorrindo e se enlaçam
Se atraem, se querem, se amam e se abraçam
Num beijo de espuma na beira do mar.

Extraído de

 

sábado, 15 de junho de 2019

"Devolva meu São João" - Mariana Teles



Não é contra o sertanejo,
Maiara nem Maraísa
Mas no São João precisa
Tocar "lembrança de um beijo",
É contra a máfia que eu vejo
Ganhando licitação,
Usurpando a tradição,
Vendendo a identidade
Pelo forró de verdade,
"Devolva meu São João"

Imaginem Salvador
Pátria do axé brasileiro,
Colocando um violeiro
Num trio do parador,
Leo Santana e um cantador
Dividindo a percussão
Vila Nova num cordão,
Sem tocar mais Preta Gil
Pelos ritmos do Brasil,
"Devolva meu São João"

Cultura é identidade!
É patrimônio de um povo,
E nenhum sucesso novo
Compra originalidade.
Não discuto a qualidade
Mas discuto a tradição,
Quem quiser ouvir modão,
Ou a Festa da Patroa,
Vá pra terra da garoa.
"Devolva meu São João"

Se quiser ouvir Marília
No mesmo tom da sofrência,
É comprar com antecedência
Villa Mix de Brasília...
Mas no São João tem família,
Que não desce até o chão
Vai pra ouvir Assisão,
Forró sem som de "breguismo"
Não dê lucro pra o modismo.
"Devolva meu São João"

Pela pátria nordestina!
Pelas nossas tradições!
Vamos romper os cordões
De camarote em Campina,
São João é na concertina,
Não se divide em cordão
Para quê segregação
Numa festa popular?
Ninguém pode separar!
"Devolva meu São João"

E as próximas gerações,
O que irão conhecer?
Irão "curtir e beber"
Como ensina esses modões?
Que será das tradições,
Com o som de apelação?!
De Wesley Safadão
Que o forró não promove
É brega noventa e nove...
Só um por cento é São João

Mariana Teles

Mariana Teles

sexta-feira, 14 de junho de 2019

VIDA DE “CABOCO” (José Alves Sobrinho)



VIDA DE “CABOCO” (José Alves Sobrinho)

I
Eu também fui cantador
Repentista e violeiro.
Todo norte brasileiro
Inda lembra, sim senhor,
O meu nome, o meu valor,
A minha voz estridente.
Porém, repentinamente
A mão do destino atroz
Arrebatou minha voz,
Deixei de cantar repente.

II
Fui pelos fãs desprezado
Depois que a voz ficou feia
Mas a opinião alheia
Não me fez complexado.
Embora um pouco afastado
Da viola e do improviso,
Ainda sinto no juízo
O talento da palavra
Se tenho verso de lavra
Do que é alheio não preciso.

III
Deixei de ser violeiro
Porque cantar não podia
Mas não deixei a poesia
Da qual também sou herdeiro,
Fui trabalhar de carreiro,
Amansar bois, ter trabalho,,
Ferrar e botar chocalho.
As mãos que tanto tocavam
Agora se habilitavam
Ao peso do cabeçalho.

IV
Aprendi todo trabalho
Da profissão de carreiro:
Encangar, fazer tanoeiro,
Relho, ferrão, cabeçalho,
Chave, cabresto, chocalho,
Mesa, travessão, rodeira,
Eixo, cunha, cantadeira,
Brabo, fueiro, cocão,
Corda-de-laçar, cambão,
Chifre-de-olho e esteira.

V
Meu carro era bem zelado,
Bem feito de craibeira,
O eixo era de aroeira
Pra cantar do meu agrado
Do mesmo jeito era o gado:
Quatro juntas de boi mansos
Ordeiras nos meus avanços
Obedientes ao grito:
Mimoso, Castanho, Bonito
Era a voz para os descansos.

VI
Cansado de ser carreiro
A convite de meus manos
Eu fui trabalhar uns anos
Na profissão de vaqueiro.
Era esperto, era ligeiro
Tinha boa montaria
Montava no que queria
Sabia andar encourado
E no serviço de gado
Qualquer trabalho eu fazia.

VII
Eu era esperto de fato,
Sabia bem aboiar
Pegava em qualquer lugar,
No limpo e dentro do mato,
Tratava de carrapato,
Adivinhava umbigueira,
Extraía varejeira
De bezerro e de garrote,
Amansava novilhote,
Sabia curar bicheira.

VIII
Do meu patrão fazendeiro
Tive os primeiros auxílios
Recebi os utensílios
Para poder ser vaqueiro,
Cavalo bom e ligeiro,
Estimado na fazenda,
Bonito como uma prenda
E gordo como eu nem sei,
De todos quantos montei
Foi mesmo o bom de encomenda.

IX
Loro, estribo, cilha e sela,
Rédeas, bride, cabeção,
Borraina, guardaba, arção,
Passador, furo, fivela,
Argola transa barbela,
Suador, couro e bruaca,
Uma pequena bisaca
De conduz\ir a mistura:
Carne assada e rapadura
Queijo de leite de vaca.

X
Aprendi tratar de gado,
Assinar, ferrar, castrar,
Tirar couros, espichar,
Traquejar touro raçado.
Zelar com todo cuidado
Os animais do patrão
E conforme a ocasião
Se me fosse necessário
Era até veterinário
Quando havia precisão.

XI
Um dia tive vontade
De abandonar o sertão,
Entreguei tudo ao patrão
O gado, a propriedade.
E retornei à cidade
Pra ver se ainda podia
Recobrar a alegria
De doze anos atrás
Foi tarde, não pude mais
Fazer o que pretendia.

XII
Ao ver-me sem condição
De cantar para viver
Procurei por um dever
Buscar outra profissão.
E a única solução
Era pegar no pesado,
Com a esposa do meu lado
E quatro filhos pequenos
Sem recursos, mais ou menos,
Eu estava desmantelado.

XIII
O meu serviço primeiro
Foi batedor de tijolo
Depois vendedor de bolo
Ajudante de padeiro,
Lambaio de padaria
Limpador de estrebaria
Tangerino de boiada
Fabricante de cocada,
Guarda noturno e vigia.

XIV
Depois disso fui leiteiro,
E vendedor de carvão,
Apanhador de algodão,
Lenhador e cambiteiro,
Fui batedor de pandeiro,
Tocador de concertina
Fui limpador de sentina,
Reformador de chapéu,
Espoleta xeleléu
De posto de gasolina.

XV
Fui mestre de batucada
Almocreve, galinheiro,
Carregador, balaieiro,
E tirador de empreitada
Fui chefe de farinhada
Empregado de cozinha,
Fabricante de bainha,
Fui vendedor de pipoca,
Moedor de mandioca,
E torrador de farinha.

XVI
Fui arrancador de dente,
Charlatão e meizinheiro,
Curador e garrafeiro,
Fui vendedor de aguardente,
Fui criador, fui servente,
Mestre de fazer sabão,
Calunga-de-caminhão,
Amansador de cavalo,
Juiz de briga de galo
Inspetor de quarteirão.

XVII
Fui banqueiro de bozó,
Fui mestre de candomblé,
Porteiro de cabaré,
Mestre-sala de forró,
Fui caçador, fui coró,
Mesmo sem poder dar grito,
Fabricante de palito,
Mas nada valeu a pena,
Fui tirador de novena
E cantador de bendito.


Digitado do livro


INCLASSIFICÁVEIS - Isabel Rei Samartim


INCLASSIFICÁVEIS

Que português, que galego, o que? Que lindos os sotaques, que riqueza a da nossa língua pelo mundo


O galego não é português. Isso constatamos Concha Rousia e mais eu quando ao chegarmos a Brasília para participar na Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial, organizada o passado mês de abril pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa, vimos que teríamos de nos comunicar com pessoas de quatro continentes. E também foi assim no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e depois na Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, e finalmente em Santa Catarina, estado do sul do Brasil onde passamos vários dias participando nos Colóquios da Lusofonia e na apresentação do Instituto Cultural Brasil-Galiza junto do académico Joám Evans Pim. Como Alice no buraco do coelho, as duas enfiamos por aquele universo multicultural onde a toda hora a mesma palavra era pronunciada de muitas maneiras. De repente e sem ajuda de nenhum decreto trilinguista estávamos participando em conversas com mais de oito línguas diferentes tais como o angolano, o timorense, o moçambicano, o riojaneirense, o paulistano, o catarinense, o português, mas sobretudo o galego, a nossa língua de sempre. A cousa semelhava um enorme Babel, ainda que bastante imperfeito porque a intercompreensão era ótima. E não somente isso, senão que o galego, essa «língua-de-seu-diferente-do-português», soava alto e claro nos salões do palácio Itamaraty, no auditório da sede da Academia Brasileira, no Teatro Pedro Ivo de Florianópolis ou na sala de entrada do Instituto Federal de Santa Catarina. E era mais forte a nossa voz quanto mais ouvida era, e virava mais galega quanto mais compreendida por pessoas não galegas. Sermos entendidas na comunicação oral foi uma satisfação imensa. Também o foi comprovar que os assuntos da Galiza são de interesse no Brasil. Donde é que nós vínhamos? A nossa língua portuguesa era bem curiosa, comentavam. Parecia-lhes um português inclassificável, que não pertencia a nenhum dos países lusófonos conhecidos. Acho que foi uma grande surpresa para os africanos. Eles, para além de manterem as suas línguas africanas, adotaram a portuguesa como língua franca dentro dos seus países e para as necessárias relações internacionais. Muitos por primeira vez ouviam e entendiam àquelas mulheres vindas de não se sabe que parte da Europa, mas não de Portugal, a defender com aquele sotaque a língua da sua terra que elas chamavam indiferentemente de galego ou língua portuguesa. Porém para os brasileiros era uma rotina. Reconhecer a sua língua sob a maquiagem dos diferentes sotaques é costume nacional, entra dentro das suas tradições, sejam os falantes da Galiza ou da China. Num país que é quase meio continente, onde moram mais libaneses que no Líbano, a comunicação com índios, mestiços, mulatos, cafuzos, italogermanos, pardos, tapuias, tupinamboclos, americataís, portugalegos e yorubárbaros está na ementa diária e todos conseguem entender-se em língua portuguesa. Conhecendo o Brasil fica muito pobre o mito de uma língua, um país. Agora sabemos que galegos e guaranis, índios da Europa e da América, podemos comunicar-nos em língua portuguesa. Aqueles que ainda não aprenderam têm só de apressar um pouco o passo, que o mundo lá fora aguarda ver-nos chegar alegres e lançais, gaiteiros e violonistas, confiantes e certos, na frente uma estrela e no bico um cantar. Somos o que somos, diz Arnaldo Antunes: inclassificáveis. Que brasileiro, que português, que galego, o que? Que lindos os sotaques, que riqueza exuberante a da nossa língua pelo mundo adiante em bocas de todas as cores e tamanhos. Que traço de união fascinante entre culturas diversas espalhadas por meio planeta. A independência, a maior liberdade, a consciência de não haver barreiras, está dentro de nós. Somos nós a crescer quando nos misturamos com quem a nossa voz entende. E nesse conhecimento e reconhecimento mútuo medramos, como Alice, sem deixar de ser os de sempre, as de sempre. 

Às moças e moços do Félix Muriel de Rianjo.



Isabel Rei é integrante da Academia Galega da Língua Portuguesa 
Mulher, música guitarrista, galega, escritora. Pensa que a amizade é uma das cousas mais importantes da vida. Aprendeu a sobreviver sem o imprescindível.






Intervenção de Concha Rousia, sala San Tiago Dantas



quinta-feira, 13 de junho de 2019

ESTE BRASIL DE CABOCO DE MÃE PRETA E PAI JOÃO



Este Brasil de "Caboco", de Mãe Preta e Pai João" (José Alves Sobrinho)

I
Brasil de agreste, caatinga,
Do cachimbo, e do pitó,
Do chamego, do coió,
Angu, mingau e mandinga
Cachaça, missanga, binga,
Farofa, xerém, pirão.
Leite, queijo, requeijão,
Cuscuz e água de coco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

II
Brasil do caracaxá,
Do quengo, do cacareco,
Do fole, do reco-reco,
Do pandeiro, do ganzá,
Do taró, do maracá,
Novena e renovação,
Da fogueira, de baião
Zabumba, batuque, coco,
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

III
Brasil que faz a fogueira
Ao Senhor São João Batista
Soltando fogos de vista
E balões a noite inteira,
Enquanto amoça solteira
Faz uma adivinhação:
Água num p´rato e carvão
Pra ver se agarra o Tinoco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

IV
Brasil da faca-quicé,
Do facão rabo-de-galo,
Peneira, urupema, ralo,
Fojo, quixó e mondé,
Landuá e jereré,
Tarrafa, anzol e arpão
Linha, caniço, cordão,
Inhaca e arroto-choco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

V
Brasil do sapo-foi-foi,
Do cururu cardereiro,
Da "orquestra do barreiro"
Do "vem cá, fulano", "oi",
Brasil do carro de boi,
Relho e vara de ferrão,
Canzil, fueiro, cocão
Que canta e não fica rouco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

VI
Brasil do mel de uruçu,
Da tubiba, da cupira,
Da rajada, jandaíra,
Enxuí e capuxu,
Onde canta o sanhaçu,
O ruxinó, o carão,
Na mata grita o cancão,
O pio do caboré no oco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

VII
Brasil de Antônio Silvino
Que a fama jamais se acaba,
Cirino, João Guabiraba,
E o brilhante Jesuíno,
É o Brasil de Virgolino
Ferreira que é Lampião,
Brasil que dança baião
Numa sala de reboco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

VIII
Brasil da mulher rendeira,
Brasil do cipó-bengala,
Brasil dos baús na sala,
Do tear, da tecedeira,
Cama de couro e esteira,
Cabeçote, camisão,
E o cachorro-tubarão
Mijando em cima do toco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

IX
O Brasil do mamulengo,
Colher-de-pau e gamela,
Quengo-de-coco, tijela,
Panela, cuité e quengo,
Brasil do choro e do dengo,
Caritó e barricão,
Brasil que passa carão
Num menino dorminhoco,
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

X
O Brasil da cirandinha,
Coco-de-roda e pagode
Brasil que barba de bode
Serve também de meizinha,
Brasil que se faz farinha
De mandioca na mão
E bota no caldeirão
Peixe com leite-de-coco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

XI
O Brasil do aluá,
Do chibé, do tipiti,
Do vinho, do açaí,
Tucupi e tacacá,
Acarajé, abará
Bolo feito de feijão
Pisado a mão-de-pilão
Frito com pimenta e coco
Este é Brasil de "Caboco"
De Mãe Preta e Pai João".

XII
O Brasil da mesa rica,
Do beiju, da tapioca,
Da moqueca, da paçoca,
Da pamonha, da canjica,
Da semente de oiticica,
Do caroço de pinhão
Curando constipação
Dando ouça a quem está mouco
Este é Brasil de "Caboco"

De Mãe Preta e Pai João".


POEMA EXTRAÍDO DO LIVRO