sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A Cachoeira dos Gonçalves - Rogério Almeida


Ignácio da Catingueira 

A cidade encolhe a cada légua vencida pelo velho caminhão, em cujo dorso se apinha a gente que regressa da feira. Todos se recostam como podem em meio à carga de mantimentos. Para os de mais idade são reservados os melhores lugares, na boléia – de onde a velha Lina foi banida por culpa de seu cachimbo eterno – ou no centro da carroceria, onde se possa apoiar confortavelmente e não se corra o risco de um tombo n`alguma curva da estrada sinuosa. Sentam-se sobre uma saca de farinha e pitam seus cigarros de palha entre uma anedota e outra, entre uma queixa e outra.
            O menino não se fartava de olhar para a ladeira do mercado velho, de onde partia o caminhão três quartos para a fazenda Cachoeira dos Gonçalves. Como de costume, Eugênio, o motorista, esperava o povo numa das ruas estreitas da feira, até que todos estivessem de volta a seus lugares para a jornada de regresso. Mas sempre havia atrasos. Um ou outro caboclo acabava tomando mais cachaça do que manda a prudência e mais de uma morena relutava em sua despedida apaixonada. Isso quando não era a velha Odete pechinchando as mercadorias para sua bodega e o resto que se danasse.  Certo era que a partida não podia esperar a tarde inteira, motivo pelo qual os atrasos eram recebidos com desaforos, e os indisciplinados, com a penitência de ficar na esquina da carroceria, onde a trepidação garantia o merecido desconforto.
            Ao longo do caminho se sucedem as casas de beira de estrada. Umas, bem cuidadas, brancas de cal, a sinalizar de longe um pé de gente na vastidão ressequida.  Outras, de paredes desnudas, a exibir o barro transbordante do entrançado de varas, típico da construção à maneira sertaneja. Aquelas, circundadas por amplos alpendres, convidam ao sono em rede alva e cheirosa, armada entre as selas e arreios pendentes das robustas vigas; estas, de peito aberto contra as forças da natureza, assemelham-se aos rochedos esparsos da paisagem, como se  houvessem brotado do chão vermelho em que fincam seus alicerces. Em comum têm, umas e outras, o vai-e-vem das criações em seus terreiros, a sinfonia dos chocalhos, a algazarra dos meninos nus pondo cabritos em fuga, a latada onde repousa a montaria, o pequeno armazém abarrotado de milho em ano de chuva – e de desesperança durante as longas estiagens – o pequeno curral, com sua densa camada de estrume e seu mourão coberto de cicatrizes deixadas pelos cascos do gado valente. Em comum têm, acima de tudo, a hospitalidade franca de seus moradores.
            Desde sua guarida, sob a sombra de uma mangueira de proporções colossais, anunciava a imagem da Santa Maria que a vila de Dom Quintino não estava longe.  Lá se tinha o último descanso antes de deixar o asfalto e enveredar pela estrada de rodagem. Havia tempo para uma visita em casa de parentes,  para comprar o café que se esquecera de trazer do Crato e até mesmo para mais um trago de cachaça numa das três bodegas do lugar. Celebradas as despedidas, era hora de  vencer a ladeira interminável que partia do povoado em direção ao ermo. O motor roncava severo e persistente, mas, depois de tantas feiras, já não podia alcançar mais que a monótona marcha de um penitente. A esta altura da viagem o sol dava sinais de cansaço. Começava a buscar seu refúgio para além do que, segundo Adalto, um caboclo maduro, de voz enérgica e gargalhada estrondosa, seriam terras do sertão dos Inhamúns.
“Fui bater lá uma vez tocando gado!”. Até aqueles dias as boiadas eram conduzidas em comitivas que varavam os sertões em longas jornadas em lombo de burro. “Cavalo não segura o rojão, não, senhor! Animal bom pro serviço é animal de casco pequeno e canela fina!”, doutrinava, servindo-se de sua sabedoria de homem do campo, conhecedor profundo da arte de domar a natureza, escapando-lhe às armadilhas, resistindo a seus caprichos, arrancando-lhe a seiva da sobrevivência, devotando-lhe amor quando chovia e rancor o mais das vezes. 
            Adalto foi dar com os costados no Crato depois de lavar sua honra a sangue contra um certo Dr. Ferreira, um fazendeiro que jamais pusera os pés numa universidade, mas que herdara uma fortuna grande o bastante para garantir o privilégio de ser chamado como bem lhe aprouvesse. Poderia ter comprado a patente de Coronel, mas se  julgava um espírito elevado, elevado demais para pertencer ao ofício das armas, em cujo universo não reinava a fraternidade nem o cavalheirismo, “mas apenas e absolutamente a brutalidade humana”, como costumava proferir em seus discursos repletos de máximas emprestadas a mais de um homem de luzes. Não era de todo ignorante. Dedicou algumas horas de ócio à leitura dos clássicos durante a juventude despreocupada na capital.  Houve mesmo uma época em que se lançou fervorosamente ao estudo do latim. Folheou a gramática enquanto lhe permitiu a paciência e entrou a citar Cícero com uma insistência de fazer inveja aos papagaios, que além de não possuírem pulmões tão potentes, eram condenados ao vexame do monoglotismo.  Empenhado na construção  de  seu próprio mito e na exploração de sua gente agregada, era capaz das mais refinadas cachorradas, para as quais, diga-se com justiça, possuía verdadeiro talento e originalidade.
 Fato é que ali, no burburinho da carroceria, o menino sonhava. Fora dali só existia a Cachoeira e o sertão mítico dos Inhamúns, onde a vaqueirama não precisava jogar o laço duas vezes. Aquele  sertão estava sempre além, muito além do horizonte. Alcançá-lo era tarefa para cabra traquejado. Mais que homem, era necessário ser vaqueiro, que só o aboio de quem conhece a novilha pelo nome para consolar o gado estrada afora. Só muita coragem para se lançar a cavalo no emaranhado de unha-de-gato e jurema à caça do boi. Só uma vida levada debaixo do sol causticante para suportar a cabaça vazia. Só muita fé para não desesperar à procura de uma cacimba que o diabo parece ter cavado na baixa da égua. Só muito temor a Deus para ver a vaca Lavadeira desabar de sede na beira da estrada sem blasfemar contra o firmamento.
Só uma lapada de cachaça para não enlouquecer.
Quando  o caminhão chegava ao terreiro da casa maior, Seu Alberto já esperava na cadeira de balanço. Foram suas mãos que lavraram as cangas de burro, entrançaram os arreios de ricas cores e os chicotes pendurados no alpendre. Não havia canto daquele lugar que não desse prova de seu trabalho. O açude, também o fizera, “tocando boi até a canela secar, meu filho...”. Mas nem só disso viviam suas mãos. Foram elas que envolveram as de Tereza na noite em que lhe fez o pedido no Monte Pio.
Dona Tereza.
A própria candura poderia se chamar assim. Era com seu abraço que terminava a viagem desde o Crato. Depois, a fantasia da vida na fazenda.
“Tá vendo aquela luz piscando lá longe?”, disse Carlos largando o braço em seu ombro e puxando-o para junto de si, “pois é lá que temos que estar amanhã pela boca da noite. Mas agora ande, vá dormir, que precisamos levantar é cedo”.
A luz era Altaneira, um lugarejo onde não havia mais para se ver além de um corredor de casebres, árvores, um arremedo de praça e alguns bancos quebrados. Em seu centro, a estrutura metálica que abrigava a única televisão do lugar, para cuja guarda e zelo se designara um caboclo de opinião, conhecido como rasgador de fole nos sambas dali, disposto e experimentado no manuseio do punhal, dono de um nome que só poderia ser seu: Mané Mandinga. Raquítico, solteiro de meia dúzia de dentes e gago, em uma palavra, feio, era um convite ao riso, o que só alimentava o despeito de seus rivais e lhes dilacerava a auto-estima, que apanhar de um cruzamento de caboré com lagartixa feito aquele havia de ser a última das vergonhas. Entre as muitas lendas sobre o sentinela da televisão constava a de que havia matado um boi com um murro certeiro na testa. O que matou o bicho, dizia-se, não foi a violência do golpe, mas a fúria de Mané, que havia de ter lá seu contrato com algum secretário do Coisa Ruim. Em Altaneira não havia controvérsias sobre a programação escolhida, que ninguém era besta de contrariar um cabra com protetor de tão respeitáveis credenciais.
O sono na fazenda era para o menino, como todo o resto ali, um evento misterioso.  E naquela noite, tanto mais, pois ao raiar do dia se abririam as porteiras para além da barragem, para que a boiada ganhasse a estrada levantando poeira, deixando o imenso baixio e a serra para trás.  Foi embriagado de imaginação que mirou a velha sela pendurada no armador da parede para sentir seus pés bem firmes nos estribos, as cordas descansando sob a lua de couro ricamente adornado, as cias apertando a barriga da cavalgadura. Pensou como cada pedaço daquela preciosa peça havia de ser um prolongamento de seu corpo, para que pudesse rolar na sela como o vaqueiro Joaquim e enganasse com sua finta a vegetação hostil. Viu, ao mirar os arreios, a farta crina de Ouro Preto, o cavalo mais famoso daquelas bandas, de pelo negro que nem pena de anu. E se viu empertigado sobre aquele animal majestoso, largando em disparada inúmeras vezes para trazer de volta ao rebanho as rezes fujonas.
“Das esporas eu não preciso”, disse baixinho, caminhando até a janela em cujo fundo ainda tremulava a solitária luz de Altaneira. Apoiou o queixo sobre as palmas das mãos e se esqueceu naquela posição até que o tímido facho desaparecesse, desviando sua atenção para os contornos da serra em seu interminável encontro com o céu, velando a quietude da noite, só perturbada pelos sons da fazenda. Era a barragem sangrando, os chocalhos no curral, os grilos, o vento dando nas folhas do pé de siriguela. Eram também, quando em vez, os cascos ligeiros das montarias passando pela estrada.  Fechou os olhos e recebeu todas as vozes emanadas de cada recanto, de cada viga de madeira, de cada bicho, planta ou fantasma. Respirou profundamente a brisa da noite e provou da felicidade de estar só.
Por fim, adormeceu.
“Acorda, meu filho. Acorda que o café tá pronto.” A voz de dona Tereza veio despertá-lo.  Trazia em uma das mãos o candeeiro com que iluminava sua peregrinação matinal à cata dos ninhos de galinhas que só ela encontrava. É certo que poderia fazê-lo às cegas depois de cinquenta anos vividos entre o poleiro e a casa da fazenda, mas o facho de luz a acompanhara por tanto tempo que já não podia ser simplesmente abandonado. Talvez o mantivesse apenas para acender o fogão a lenha. Talvez tivesse medo do escuro.
Na ocasião em que conheceu Alberto não contava mais que dezessete anos. Foi no casamento de Bia, que a acompanharia até a velhice. Trazia os cabelos cuidadosamente entrançados e um vestido sóbrio, alvo feito capucho de algodão. Seus olhos  tinham visto pouco além da paisagem de Monte Pio, mas tiveram a certeza de ver o mundo quando aquele rapaz imponente lhes cruzou o caminho. Mesmo assim, não ousou mais que uma furtiva saudação e a honra de uma dança concedida. Ela, que espremeu os olhos ao sentir o corpo de homem tão rente ao seu, sentiu com tremores o calor que dele emanava. Ele, desorientado por seu perfume de moça, não foi capaz de uma palavra sequer. E assim, apartados da realidade, provaram pela primeira vez e em silêncio o sentimento que jamais os abandonaria.
            Naquela noite Alberto não pregou os olhos. Sabia que não poderia dormir sossegado até o dia em que conduzisse pela mão a mocinha dos olhos negros até o altar e de lá para a vida. Às tantas da madrugada já tinha perdido as contas de quantas vezes caminhara até a quartinha. Errou pelas veredas noturnas como um autômato, tentou desviar o pensamento para os assuntos da fazenda, para a cerca da manga do Pinga, que não tinha consertado, para a colheita do feijão, que não poderia ser feita sem a ajuda de trabalhadores de empreita. Quantos seriam necessários?  Lembrou-se do gado a ser vendido na feira. Será que apanharia um preço justo? “Era bom amilhar a vaca Rodeira, pele e osso, a bichinha. Meu Deus, não chove mais, não?”___________________________________________________
            Em nenhum desses pensamentos obteve o refúgio desejado. Entregou-se sem mais luta ao inevitável, e o inevitável era que estava completamente tomado pela beleza onipresente de Tereza. Não, Terezinha. O diminutivo é tão dos amantes quanto o suspiro.______________________________________________
            A jornada de Alberto começava naquela noite do passado.__________
            Assim como a do menino na vermelhidão daquela manhã sertaneja.____

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

________________________________________________________

3 comentários:

  1. Belo Texto, Rogério. O Machado de Assis incorporou em ti.

    ResponderExcluir
  2. Concordo Prof° Gilberto!
    Fiquei emocionado...Enfrentei essa Odisséia muitas vezes...Saindo do Sitio Salgado ás 5h, Caminhão Verde de Sr. Basto...viagm longa pelas veredas da zona rural de Japi em direção a "RUA"... Santa Cruz do Inharé...
    Parabéns pelo texto Rogério!

    ResponderExcluir
  3. Pois é caro André, eu também enfrentei essa mesma odisséia com muita alegria.

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”