sábado, 27 de julho de 2024

"BELEZA" ENTRE ASPAS

 


"BELEZA" ENTRE ASPAS


A unha do polegar está em foco neste momento. Ela é tão discreta que até para crescer faz sem que ninguém veja como acontece. Uma poeira se aloja, avisando à manicure que venha rápido, pois o desfile está para começar.

Uma chance aos vinte anos, que jamais irá se repetir, veio cair em seu colo agarrada com todo o fervor. A unha está gritando por atenção, em vão. A multidão olha para a miss como um todo, e o rosto sorridente é como se fosse o passaporte para a passarela. O cabelo, no mesmo patamar da insensibilidade da unha, recebe muito mais cuidados.

Os homens fixam o olhar entre as pernas, as mulheres, na roupa minúscula, procurando uma celulite para comparações. Mãos aplaudem o trabalho da natureza que pouco exigiu da possuidora ora apresentada. Eu queria ser mais do que um amontoado de curvas, mas a beleza se instalou na minha vaidade e tenho que aproveitar este momento, pensa ela.

Os árabes a observam e avaliam quanto valeria em ouro aquela matriz tão aperfeiçoada. A unha está pintada e limpa, fazendo comparações com a do dedão entre dourados de um sapato de salto alto. Dedo mindinho mais perfeito não há, tanto quanto os alfinetes produzidos na fábrica herdada dos avós e ainda sobrevivendo a duras penas.

Ela é, além de bela, detalhista. E se agora me desse uma diarreia exatamente na hora da transferência da faixa? Não nos preocupemos, comentam entre si os responsáveis pelo sistema digestório que determinaram uma lavagem estomacal antes do desfile.

Muitas sorriem, mas o pai de uma das derrotadas abre o portão de casa e caminha para o bar onde seus amigos de copo irão dizer: deixe para lá, o importante é se embriagar. Ele olha para a rachadura da tábua do balcão impregnada de pó preto, denunciando pouco cuidado, e emborca mais doses de cachaça barata.

A noite passa rápido para aquela que a todo momento tem uma câmera a lhe fotografar. Naquele mesmo momento, seu ex-noivo esvazia mais uma garrafa de vinho que tantas vezes fizeram juntos. Espero conseguir um casamento que eu não precise ficar esperando o trinco da porta se movimentar anunciando que o marido está de volta, chegam-lhe esses pensamentos e logo são substituídos pela sensação de deusa nas nuvens.

A hora da entrevista chegou com respostas ensaiadas tanto quanto escutar pobres por onde deverá passar a imagem de humilde. Naquela noite fria e úmida, uma mulher com seu filho se escondem no matagal com medo do marido embriagado. Luzes coloridas mudam a cada passo da deusa ovacionada, enquanto uma lamparina se apaga por falta de querosene do outro lado da cidade. Uma madame, com um cachorrinho no colo, aprecia a desenvoltura daquela a qual deu nota máxima.

A miss universo pensa em pedir um doce de mamão com coco, mas só pensa. Ela não quer frustrar seus admiradores acostumados com ouro em pó na comida. Um homem acima do peso, mexendo nos botões da mesa de som, tira um chocolate do bolso e, sorrateiramente, abaixa a cabeça para prosseguir no vício de chocólatra.

A musa da noite agradece aos céus por não ter ficado com nenhuma cicatriz das chicotadas que sofreu do pai falecido que a puniu quando ela brincava de roleta russa. Aplausos ecoam no teatro imenso onde muitas celebridades desfilaram seu talento, agora substituídas por passos longos e ritmados numa canção tal qual o arco do violino passando pelas cordas numa dependência de olho/corpo.

Jornais anunciam mais uma a brilhar por um ano. É o trabalho sem mais-valia daquela mulher única entre tantas operárias que pela manhã abrirão a marmita fria na colheita do café. Nem sabem que ela existe, mas têm em comum as TPM. Ela viaja nos aplausos que não param. Isto é minha realidade agora, imagina o tempo que ficará sob o comando da moda e alarga o sorriso mais ainda para dispersar algum pensamento negativo. Mesmo assim, você matou sua mãe, irão dizer daqui a alguns anos, já que ela pretende abandoná-la. Não quer olhar para o passado, e sua mãe representa tudo que não gostaria de relembrar.

A festa nos bastidores prossegue sem telões para o mundo. Um rosto amolecido pelo álcool está entre os convidados. É seu irmão que ela faz questão de trazer a tiracolo. Praticam incesto desde o tempo que ficavam a sós enquanto os pais iam para a fábrica.

Pela manhã, os homens da limpeza sonham com aquela mulher tão pura que passou por ali. Crianças sujas, há vinte anos, catavam lixo numa daquelas noites festivas. Sanduíches pela metade ainda estavam bons para serem devorados por uma delas que estivera sonhando em trabalhar naquele evento como de fato está acontecendo.

Ela acorda no quarto de hotel. Olha para seu vestido jogado na poltrona onde serviu para o coito com um dos patrocinadores do evento. Quantos atos iguais àquele irão acontecer durante o seu reinado? Vira-se de lado e volta a dormir o sono das vencedoras.


Heraldo Lins Marinho Dantas Natal/RN, 27.07.2024 - 07h15min.

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