"BELEZA" ENTRE
ASPAS
A unha do
polegar está em foco neste momento. Ela é tão discreta que até para crescer faz
sem que ninguém veja como acontece. Uma poeira se aloja, avisando à manicure
que venha rápido, pois o desfile está para começar.
Uma
chance aos vinte anos, que jamais irá se repetir, veio cair em seu colo
agarrada com todo o fervor. A unha está gritando por atenção, em vão. A
multidão olha para a miss como um todo, e o rosto sorridente é como se fosse o
passaporte para a passarela. O cabelo, no mesmo patamar da insensibilidade da
unha, recebe muito mais cuidados.
Os homens
fixam o olhar entre as pernas, as mulheres, na roupa minúscula, procurando uma
celulite para comparações. Mãos aplaudem o trabalho da natureza que pouco
exigiu da possuidora ora apresentada. Eu queria ser mais do que um amontoado de
curvas, mas a beleza se instalou na minha vaidade e tenho que aproveitar este
momento, pensa ela.
Os árabes
a observam e avaliam quanto valeria em ouro aquela matriz tão aperfeiçoada. A
unha está pintada e limpa, fazendo comparações com a do dedão entre dourados de
um sapato de salto alto. Dedo mindinho mais perfeito não há, tanto quanto os
alfinetes produzidos na fábrica herdada dos avós e ainda sobrevivendo a duras
penas.
Ela é,
além de bela, detalhista. E se agora me desse uma diarreia exatamente na hora
da transferência da faixa? Não nos preocupemos, comentam entre si os
responsáveis pelo sistema digestório que determinaram uma lavagem estomacal
antes do desfile.
Muitas
sorriem, mas o pai de uma das derrotadas abre o portão de casa e caminha para o
bar onde seus amigos de copo irão dizer: deixe para lá, o importante é se
embriagar. Ele olha para a rachadura da tábua do balcão impregnada de pó preto,
denunciando pouco cuidado, e emborca mais doses de cachaça barata.
A noite
passa rápido para aquela que a todo momento tem uma câmera a lhe fotografar.
Naquele mesmo momento, seu ex-noivo esvazia mais uma garrafa de vinho que
tantas vezes fizeram juntos. Espero conseguir um casamento que eu não precise
ficar esperando o trinco da porta se movimentar anunciando que o marido está de
volta, chegam-lhe esses pensamentos e logo são substituídos pela sensação de
deusa nas nuvens.
A hora da
entrevista chegou com respostas ensaiadas tanto quanto escutar pobres por onde
deverá passar a imagem de humilde. Naquela noite fria e úmida, uma mulher com
seu filho se escondem no matagal com medo do marido embriagado. Luzes coloridas
mudam a cada passo da deusa ovacionada, enquanto uma lamparina se apaga por
falta de querosene do outro lado da cidade. Uma madame, com um cachorrinho no
colo, aprecia a desenvoltura daquela a qual deu nota máxima.
A miss
universo pensa em pedir um doce de mamão com coco, mas só pensa. Ela não quer
frustrar seus admiradores acostumados com ouro em pó na comida. Um homem acima
do peso, mexendo nos botões da mesa de som, tira um chocolate do bolso e,
sorrateiramente, abaixa a cabeça para prosseguir no vício de chocólatra.
A musa da
noite agradece aos céus por não ter ficado com nenhuma cicatriz das chicotadas
que sofreu do pai falecido que a puniu quando ela brincava de roleta russa.
Aplausos ecoam no teatro imenso onde muitas celebridades desfilaram seu
talento, agora substituídas por passos longos e ritmados numa canção tal qual o
arco do violino passando pelas cordas numa dependência de olho/corpo.
Jornais
anunciam mais uma a brilhar por um ano. É o trabalho sem mais-valia daquela
mulher única entre tantas operárias que pela manhã abrirão a marmita fria na
colheita do café. Nem sabem que ela existe, mas têm em comum as TPM. Ela viaja
nos aplausos que não param. Isto é minha realidade agora, imagina o tempo que
ficará sob o comando da moda e alarga o sorriso mais ainda para dispersar algum
pensamento negativo. Mesmo assim, você matou sua mãe, irão dizer daqui a alguns
anos, já que ela pretende abandoná-la. Não quer olhar para o passado, e sua mãe
representa tudo que não gostaria de relembrar.
A festa
nos bastidores prossegue sem telões para o mundo. Um rosto amolecido pelo
álcool está entre os convidados. É seu irmão que ela faz questão de trazer a
tiracolo. Praticam incesto desde o tempo que ficavam a sós enquanto os pais iam
para a fábrica.
Pela
manhã, os homens da limpeza sonham com aquela mulher tão pura que passou por
ali. Crianças sujas, há vinte anos, catavam lixo numa daquelas noites festivas.
Sanduíches pela metade ainda estavam bons para serem devorados por uma delas
que estivera sonhando em trabalhar naquele evento como de fato está
acontecendo.
Ela
acorda no quarto de hotel. Olha para seu vestido jogado na poltrona onde serviu
para o coito com um dos patrocinadores do evento. Quantos atos iguais àquele
irão acontecer durante o seu reinado? Vira-se de lado e volta a dormir o sono
das vencedoras.
Heraldo
Lins Marinho Dantas Natal/RN, 27.07.2024 - 07h15min.
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