SERÁ QUE VALE A PENA?
Acorde, já está na hora! A esposa não havia escutado o despertador, digo, o alarme do celular. Para qual hora você colocou? Cinco e dez. Ah, não!, tem que ser quatro e quarenta e cinco. Nesse horário você vai chegar atrasada. Ela correu para o banheiro e ele voltou para a sala. No caminho, encontrou-se com a mãe a lhe tirar o sossego. Vá dormir! Mande a sua mãe. Era isso mesmo que estava fazendo, mas preferiu rir para não começar o dia disparando torpedos.
A mulher saiu para a feira e ele ficou sozinho. A mãe não foi nem ficou, simplesmente porque não resistiu ao parto, e aquela com a qual havia falado era uma fantasia mal resolvida. Ele queria ressuscitá-la para sentir como é ter alguém a lhe perdoar a todo instante.
Será que a mulher vai se lembrar de comprar as tapiocas molhadas? Veio para os livros, abriu-os um por um, arrumou-os na caixa e jogou tudo no lixo. Não estava mais a fim de leituras que ficam desatualizadas a cada momento.
Ela chegou com as tapiocas e doida para saber as novidades. Vamos para a praia, disse digitando no celular. Alô! Não, não há mais vagas. Depois de várias tentativas frustradas, encontrou apenas um chalé disponível na serra distante duas horas de carro. Perto da cidade serrana, encontraram a caseira esperando-os ansiosa. Sejam bem-vindos. Você é Márcia? Sim, e foi logo mostrando o chalé e entregando-lhes as chaves.
Podem entrar! Aqui tem isso e aquilo, e cuidado porque num descuido esta porta trava e só abre por dentro. São muitas torres de energia eólica, né!? Sim, e esta ventania continua trazendo muito mais empregos. Sem que precisassem perguntar se era casada, ela logo socializou sua dor. Meu marido faz um mês que morreu. Foi mesmo!? Ele sempre dizia: não se estresse minha veia, ele às vezes me chamava assim, para não ter um infarto. Passei uns quinze dias deitada e sem ânimo, e só melhorei quando recebi a hóstia consagrada. Tenho duas filhas, e fiquei morando na casa do meu pai. A maior já é casada, e vive com o marido, mas eu não tive coragem de entrar em casa depois que ele se foi. Me dá uma mal-estar grande ao me aproximar de lá. Quando choro, a pequena diz não chore não mamãe porque papai fica triste.
A vila, com o nome da protagonista do país das maravilhas, havia sido escolhida desde o momento que ele a viu na internet. O dono não mora aqui, e esta bicicleta é dele para usar quando vem curtir sua aposentadoria.
Há uma cozinha, caso os hóspedes gostem de cozinhar, e também uma lareira para enfrentar um frio de catorze graus no mês de São João. Além de piscina e área comum, há pedras enormes ao redor. Aquela é a pedra do navio, mais adiante tem a pedra da mesa, ali a pedra do trem, aquela outra é a pedra da caridade. Por que pedra da caridade? Aqui e acolá alguém pula de lá. Há também os suicidas nesta cidade tão tranquila? Não, os que tinha morreram todos. Uma das piores coisas do mundo é ser um suicida frustrado. Nem morrer o cabra sabe, né!? Ele só pensou em dizer, mas ficou calado porque com a mulher da foice não se brinca.
Uma das filhas chegou com o avô na moto. Diga tudo bom! A menina de quatro anos, como a maioria delas, não havia ainda sido ensinada a se socializar. Ensina-se quase tudo na escola, menos a serem atenciosas. Será que é por isso que temos tantos conflitos em nossa sociedade?, pensou enquanto via ela entrar no seu mundo da indiferença e ficar espetando algumas pétalas amarelas em um palito.
Ainda faltam os hóspedes do chalé Dornellas, disse a recepcionista levantando-se da cadeira e oferecendo café. O avô se dispôs a mostrar os pontos turísticos. Quantos habitantes há por aqui? Pouco mais de dois mil. Veja, esposa, não tem um papel na rua, nem esgoto a céu aberto e nem pichação. O prefeito fez um bocado de casas ali e deu para os pobres. De graça? Sim. Ele já ganhou várias vezes e o candidato que ele apoia sempre ganha. Aqui o povo fala muito em política? É acabando uma e já se fala na próxima. Quem ganhou na última? Aqui foi Lula e continua sendo. Aquelas senhorinhas sentadas ali na sombra do mercado falam da vida alheia? Bem pouquinho, respondeu dando uma risada e ajeitando o boné. Aqui é a rua dos edifícios. A tradição é construir casas com três ou quatro andares destoando do resto da cidade de casinhas simples.
Aqui parece que as meninas casam cedo, né!? A média é quinze anos. A neta de dezesseis já está casada há séculos, soube antes dele falar sobre isso, pois a mãe falante já havia passado a informação.
Estes chalés são quase todos de pessoas da capital. Tem uns para vender perto do mirante onde há várias tabuletas com frases, e uma delas diz: "Não siga padrões, invente os seus." Deve ser caro, hein? Quanto mais acidentado, mais valor o terreno tem. É costume construir chalés em cima dos serrotes, inclusive há uns em formato de bolas que a diária custa uma fortuna. O guia avô ia apontando e contando histórias com a neta no colo. Na saída, houve a sugestão de seguir o código de trânsito onde crianças devem viajar no banco de trás. "Aqui pode, quem manda é nós!"
Para entrar no clima do que se vai encontrar por lá, trafega-se por uma estrada esburacada. Ficou pensando se era de propósito que o governo Estadual mantinha as estradas abandonadas. É tipo seguir o caminho na floresta escura para se chegar ao castelo de Drácula, mesmo assim valeu muito a experiência.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Monte das Gameleiras/RN, 31.12.2023 - 12h23min.
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