sábado, 9 de dezembro de 2023

PONTO DE REFERÊNCIA

 


PONTO DE REFERÊNCIA 


Era famosa por lá. De fato, ninguém sabia quanto tempo ela estava naquela esquina, só se sabe que permanecia, mesmo na chuva ou no sol, sem arredar o pé. Pessoas passavam, outras faziam fotos e a vida continuava com suas mais estranhas movimentações de uma realidade comum. 

Um cão passou, como tantas vezes passara, e nada fez além de caminhar balançando o cotoco de rabo cortado por um bêbado parado pela polícia. Se não houvesse ninguém para registrá-lo, jamais o haviam notado de tão movimentada que estava aquela manhã de sábado. 

Vários veículos trafegavam, porém nenhum podia estacionar naquele centro de cidade abarrotado de vendedores com seus gritos e raivas de pouco apurado. 

Havia um semáforo estressando os motoristas, e ninguém nunca agradecia quando chegava a vez do verde mandar seguirem com suas carrancas guardadas entre vidros fechados. 

O vento se partia em duas correntes deixando todos concordarem ser ali o local onde ele aproveitava para fazer curvas. A poeira vinha em poucas porções juntamente com a fuligem impregnando-se na calçada, nos postes, nas vitrines poucas vezes lavadas e nos olhos de quem se arriscava a pé. 

Foi ali que muitos amores foram feitos e refeitos observados pelos pombos que comiam os restos de pães depositados nas lixeiras abarrotadas de coisas de mau cheiro. 

Uma placa enferrujada quase não mais mostrava o nome das ruas, e ninguém sabia dizer o porquê de não ter já sido retirada. Acreditava-se que ela servia para empoleirar as aves fugitivas das garras dos gatos e dos gabirus que disputavam território.

Algumas grades no chão denunciavam haver túneis subterrâneos com lixo, água parada e muito medo de se entrar lá. Quem se arriscava, voltava para casa nem um pouco feliz. Era o batismo dos recrutas bombeiros ao desentupir até crocodilos aninhados na maré baixa.

Cedo da noite, tornava-se ponto marcado por prostitutas corridas mais tarde pelos travestis violentos. Foi lá que em época de Natal um deles se fantasiou de Papai Noel para papar um dos seus rivais tirando a navalha escondida na barba. 

Os vagabundos também passavam pela esquina, às vezes paravam por causa de alguma possível vítima e seguiam com uma carteira a mais jogada fora lá adiante. 

Não se podia ignorar aquele ponto turístico mantido sem nenhuma reforma para exemplificar o rastro deixado pela guerra civil finalizada há pouco mais de trinta anos. As paredes ainda mantinham os autênticos buracos de balas servindo de amparo para insetos e passarinhos urbanos.

Dentro de uma das casas de parede perfurada, um marido acabara de confessar estar apaixonado por outra. A mulher levanta-se da mesa e anda até a cozinha. Num canto de parede, uma cadeira branca ressignificando o conceito de solidão que estava por vir. As crianças nem sabiam que iriam perder o pai no sono profundo que estavam. A mulher, com um vestido de dormir apropriado na cor tipo pele de zebra, zanzava pela área de serviço sem saber o que dizer a pedido do marido. Iriam dormir, quem sabe, pela última vez juntos. No outro dia, os pertences sairiam na mala do carro deixando livros e ferramentas para leilão sem o apego de apaixonados. 

Uma chuva fina veio celebrar o momento da meia-noite sem sono. A esquina, fechada em seu silêncio sepucral, apenas contava com a companhia daquela que lhe dava o nome de esquina da estátua. 


Heraldo Lins Marinho Dantas




Natal/RN, 09.12.2022 - 10h14min.

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