sábado, 16 de dezembro de 2023

O HARMONIOSO ENSINO-APRENDIZAGEM

 


O HARMONIOSO ENSINO-APRENDIZAGEM


Aulas de piano atormentando-a. Por que criança tem que aprender música? Teclas secas e solitárias cercadas por verniz impecável é o seu mundo. O assento já está doendo há algum tempo. Poderia estar brincando na areia, subindo em árvore ou correndo atrás das galinhas. Será que mamãe não percebe minha falta de interessa por isso!? Este ré bemol é tocado com este dedo. Pensa na lagoa e nas margens com piqueniques. Lembre-se de apertar o pedal para prolongar esta nota. Algumas taças de cristal estremecem a cada dedilhado só perceptível pelo ouvido treinado da professora. Aquilo lhe tira o juízo. Já reclamou, educadamente, porém ninguém mais deu conta desses pequenos tins vindos da cristaleira. 

Em frente, uma imagem de São Francisco as observa. Algumas rosas dentro de jarros com água enfeitam o oratório. Dá a impressão que só o santo percebe o sacrifício suado das duas que fizeram um pacto surdo para se aturarem naquela maratona de repetições. Alguns em seus quartos fugindo do som martelado nem se arriscam a aparecer. No caso, um irmão menor que prefere ler o que não gosta a ficar escutando a aula; uma tia, vindo da cidade em busca de ar fresco, fica planejando antecipar sua volta. 

A mãe torce para dar certo. Sua pressão arterial é tomada pela ansiedade de ver a filha mostrando a um futuro noivo que sabe tocar. O pai, nesse horário, graças a Deus, está cuidando dos negócios da família. O relógio na parede parece que não anda, pensa a professora fatigada pela idade e com paciência arranjada, não se sabe onde, para suportar também um unheiro latejando no dedão do pé direito. 

O chá, oferecido pela dona da casa, já esfriou restando ainda alguns farelos dos bolinhos que a professora pensa em raspar do prato, mas tem medo de ser mal-interpretada. Naquele estresse vagaroso, nada melhor do que se distrair mastigando. É um caso perdido, pensa em manter segredo para não jogar seu salário fora. Quanto sofrem as duas incumbidas de realizar a tarefa do capricho de uma mãe frustrada!? 

O escravo do tic tac agradece por ter nascido relógio. Só ele e São Francisco suportam a tortura. O gato passa correndo sem nem pensar em roçar o rabo nas pernas da visita ou se deixar acariciar. Ele está pesado como o clima da aula, mesmo assim faz um esforço sobrefelino para fugir dali. 

O fogo na lareira está apagado. Ainda não chegou a hora de acendê-lo, diz para si mesma a serviçal que já pensa em pedir as contas. O som da pretensa melodia se encarrega de aquecer o ambiente. Os átomos do ar vibram com mais intensidade acompanhando o nível sonoro desagradável. 

Dali a pouco será servido o jantar, e o temor da cozinheira é que o leite vire coalhada. Ninguém conversa na cozinha para não atrapalhar a obra prima do atirei o pau no gato. Deve ter sido por isso que o bichano passou correndo. As duas suam. A professora olha para a mão da jovem menina que por sua vez olha para as bolinhas em sua frente querendo entender aqueles desenhos torturantes. Não se encaram, apenas percebem as teclas pretas e brancas criarem vida como se fossem zebras correndo na savana. 

Alguém já pensou em transformar aquela caixa produtora de barulho em lenha para a lareira. O irmão tem certeza que não suportaria as feridas abertas no seu espinhaço. Por via das dúvidas, é melhor colocar algodão e travesseiros nos ouvidos.   

A vontade da professora é surrar a aluna, puxar seus cabelos, bater em seus dedos para fazê-los obedecer chamando-a de cachorra burra; obrigá-la a comer as partituras sem nem tomar água; esbofeteá-la e depois chorar de compaixão dizendo desculpe-me que você não tem culpa da minha miséria vocacional em nunca ter sido estrela de concertos. Minha linda menina, você não tem culpa por eu não ter sido ovacionada nos melhores teatros do mundo. Meu sonho era ter superado Bach, mas apenas baques e tropeções acompanharam minha carreira. As duas terminariam abraçadas e chorando depois que tivessem realizado o sonho de alimentar a lareira com madeira de lei, por sugestão do irmão. 

A menina, por sua vez, quer que ela morra ou que tenha uma paralisia total para nunca mais colocar os pés naquela casa. Se pudesse, arrancaria sua cabeça fora, tocava fogo naqueles cabelos da mesma cor e depois diria perdoe-me professora, a senhora não merecia isso. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.12.2023 - 07h21min.




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