MUITO ALÉM DE UM SECADOR
Roupas no varal, escurecidas pela penumbra da madrugada, balançam-se ao bel-prazer do vento. As que foram ao baile de formatura tremulam dividindo o espaço com um simples pano de prato que nunca saiu da cozinha e nem sabe que vai desaparecer nas mãos de quem o ignora.
Os dias também passam para ele envelhecendo-o até virar pó sem que ninguém nunca se dê conta da sua real existência. Diferentemente de um veículo recém-lançado, o pano de prato existe invisível numa casa e nunca foi tema de debate na hora do jantar. Fica ali testemunhando os segredos confessados pela patroa e divididos entre os serviçais sem ao menos poder emitir sua opinião. Na verdade, ele faz parte da ouvidoria da cozinha, e por mais sofisticado que pareça nunca será preservado como se preserva um selo. Ninguém jamais procurou colecioná-los com medo de se passar por doido varrido. O que é que ele coleciona mesmo? Panos de prato. Pode cuidar da sua internação, diriam os mais sarcásticos.
O que seria de uma casa sem ele? Usaríamos o vestido da formatura para secar a louça? Não! Nunca ninguém em sã consciência iria colocar seu vestido cravejado de pérolas para tal função. Até nos objetos existe a graduação em importância, e com esse item não seria diferente. Dificilmente ele seria usado para fazer curativos, a não ser numa situação de extrema necessidade tipo uma trincheira na guerra. É muito estranho imaginar que num kit de sobrevivência na selva ele possa estar presente. Uma agulha e um carretel de linha, vá lá.
Ele também serve para amarrar a chupeta dos futuros fumantes e somente se igualam ao vestido na hora de se verem emparelhados para ficarem livres da umidade, e só.
Ele disputa a atenção dos usuários com a toalha que, vista de forma negativa, visita lugares não muito atrativos para uma peça feita do mais fino algodão arábico, linho ou de saco de açúcar. Nesse último material, os dois podem ter a mesma origem, porém nunca se juntam como uma irmandade.
O que faz a toalha ser tão discriminada por ele é sua vizinhança. Onde você mora? Moro vizinho ao papel higiênico e ao vaso sanitário, diria ela se fosse perguntado. Algumas toalhas poderiam se gabar de serem usadas apenas nas areias da praia, mas isso não seria tão verdade quanto parece.
Em relação às funções, o pano de prato se envaidece toda vez que está no varal, inclusive faz críticas pesadas contra a cueca e a calcinha. Para o pano de prato, a meia é outra sem-futuro, pois só vive sendo pisada no meio de chulé além da primeira a ser molhada quando seu dono vai nas poças. Uma tia já morta gostava de se envaidecer dizendo que o pano de chão dela era mais limpo do que os de prato da vizinha, mas sobre sua qualidade de vida ele nunca pode decidir, já que ele é e vai continuar sendo apenas um eterno refém domiciliar.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 02.12.2023 – 13h40min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”