sábado, 18 de novembro de 2023

MÁSCARA DE SABORES



 MÁSCARA DE SABORES


Dentre outras coisas, na geladeira há um boi morto, pelo menos pedaços dele que algumas pessoas esperam a fome chegar para devorá-lo sem saber que ele morreu de cobra. 

Há também uns tomates que foram plantados por um casal de velhinhos. Eles já nem conseguem se abaixar por sentir dores terríveis na coluna. Suas hérnias de disco exigem cirurgia, mas não podem deixar sua plantação entregue aos gafanhotos. Os dois têm medo de que quando voltarem do hospital transformem-se em pedintes, pois não existe poupança ou bens que possam sustentá-los durante a recuperação, e o dinheiro da aposentadoria está todo comprometido com os medicamentos.

As batatas vieram da vazante de uma viúva que teve seu marido morto por alguém que ninguém sabe quem foi ou não querem falar. Enquanto ela planta, cuida dos quatro filhos em situação de risco de serem raptados pelos negociantes de crianças. 

A geladeira é de última geração, e lá dentro podemos encontrar também cebola comprada de uma mulher brava que já cumpriu pena por assassinato. Ela resolveu tirar o estigma de assassina ao voltar para a feira, contudo na sua barraca só encosta quem não a conhece. Os feirantes a respeitam em público, porém na surdina comentam sobre os antecedentes da colega esvaziando sua freguesia. Se ela vai decidir entrar para os grupos especiais do poder paralelo, isso só o tempo vai dizer. 

O coentro veio de um fornecedor que diz ter medo de perder a mulher. Quando sai de casa, fecha as portas com cadeados e fica telefonando de vez em quando para saber se ela ainda está por lá.

Na parte de baixo do refrigerador, há os cocos verdes. Muitos foram as testemunhas da queda de quem hoje é tetraplégico. Era o melhor tirador de coco da região, tomou cachaça e, para ganhar uma aposta, foi subir embriagado. Hoje ele precisa de ajuda até para beber a água daqueles que derrubava com os pés.

Colhidas pelos vizinhos dilapidadores dos bens alheios, as mangas se apresentam frescas e maduras. Os seus raptadores aproveitaram a madrugada para invadir a propriedade daquele que já nem pode mais fazer a manutenção das cercas. 

Colocada em pequenas jarras, a água chegou à residência dentro de um balde de vinte litros vendidos como sendo mineral, no entanto os proprietários nem desconfiam que nunca existiu fonte natural daquela marca, apenas uma cisterna serve de depósito para que o produto, temperado com fezes de gatos, possa permanecer sendo engarrafado.

Armazenados na segunda prateleira, os mamões servem também de enfeites de tão bonitos que se apresentam. Vendidos pela mulher do coveiro, eles já receberam o título do mais puro doce natural do mundo, contudo ela jamais revela qual o tipo de adubo utilizado na plantação.  

Os abacaxis, que vêm de mais longe, são irmãos do que foram embora em cima de uma carreta. O dono da plantação ainda hoje lamenta ter confiado quase toda a safra a um cheque sem fundos. 

Na porta da geladeira, ficam os ovos vindos de uma granja perto do lixão onde as galinhas são abrigadas em compartimentos apertados e iluminados dia e noite. Para muitos, isso não tem importância, muito menos saber que recebem injeções para aumentar a produtividade. Mesmo os consumidores sofrendo dores insuportáveis com tumores explodindo em pus abundante, esse detalhe nunca fez a saúde pública fiscalizar com mais rigor. 

O proprietário da geladeira, finalmente, levanta-se para tomar seu café da manhã olhando para cada alimento e se perguntando: fazer o quê?


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.11.2023 - 14h43min.




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