segunda-feira, 11 de setembro de 2023

FECHANDO O CERCO

 

FECHANDO O CERCO


O ataúde encontrava-se no final da sala. Preferi fazer assim para que os funcionários pudessem participar do velório. Num corredor ao lado, havia um bufê. Assistiu ao jogo ontem? Nada rapaz, fiquei em casa com gripe e febre sem nem vontade de ligar a TV.  

Vários grupinhos se formaram em torno da comida farta. Num deles, duas moças e um rapaz, desconhecidos dos demais, conversavam baixinho. Eu já fiz a petição inicial com um pedido de intervenção e estou acompanhando pelo telefone o deslocamento do interventor. Era bom que mamãe tivesse vindo, pelo menos teríamos mais autoridade para enfrentar a fera. 

A quem eles se referiam, estava perto do caixão recebendo as condolências junto com a filha. Ah, eu vi você quando ainda era pequenina. Sempre vocês iam pescar na lagoa da nossa casa de campo, lembra? Sim, você é minha tia. Isso mesmo. Já casou? Ainda não, tia, mas estou aberta a sugestões. Há algum conhecido seu...? 

Os três voltaram e ficaram um pouco afastados, porém dava para escutar o falatório. Parece que aquela é a nossa irmã mais nova. O rapaz foi segurado pelo braço, pois queria ir se identificar. Que eu saiba, foram só dois casamentos. A irmã mais velha, advogada, estava à frente respondendo ao rapaz em início de carreira na robótica. Será que temos direito à herança? Claro que sim, já que ele nunca se separou da nossa mãe, pelo menos no papel. Com aquela ali foi só união estável. De vez em quando, chegava um conhecido da mulher de luto. Quando sair daqui, vou dar entrada no inventário, disse a advogada olhando séria com um rabo de olho para a dona do caixão. 

O homem que ia fazer a encomenda do corpo, chegou auxiliado por uma mulher com um livro na mão e logo atrás um jovem com um violão. Bom dia! Que a graça do nosso senhor Jesus Cristo abençoe este corpo... amém. Quem for comungar, por gentileza levante a mão. Feita a distribuição das hóstias, o Padre continuou apertando as mãos dos presentes e se retirando para um outro evento. Se o povo soubesse o quanto tenho asco em fazer esses eventos, nem morriam e nem matavam. Quanta falsidade nesse chororô besta. Entrou no carro de luxo lembrando-se daquele que andava em um jumento.

Se alguém quiser olhar, por favor se adiante que iremos fechar o caixão. É bom mesmo, porque já está fedendo, pensou uma das carpideiras doida para receber o dinheiro. Era bom que nos pagassem por minuto chorado, pois não aguento colocar colírio caro. Com a idade avançando, até as lágrimas vão secando.

Durante o cortejo, o motorista do carro funerário também não segurava as lágrimas. Sua mulher já havia reclamado que ele deveria ser mais profissional, porém não aguentava ver alguém chorar sem que também não entrasse no clima. Era uma herança de família. 

Muitos veículos seguiram para o cemitério onde os ricos se enterram. Lá, umas mulheres de preto com gola branca orientava os que chegavam procurando onde era o salão. Havia a preocupação em não estar no velório errado. Muitos salões davam conta da clientela que gostava de ficar em sala vip até naqueles momentos. 

Passados alguns minutos na pedra de mármore, o corpo finalmente foi transportado para ali pertinho. Saiu em fila a classificação do grau de parentesco.

Já à noite, quando se dirigiam para o veículo, mãe e filha foram interpeladas pelas três figuras desconhecidas. Nós somos filhos do falecido que você dizia ser seu marido. Ela arrepiou-se, pois não contava com aquela visita tão rápida. Não tenho nada para conversar com vocês, ligou o carro, no entanto ainda permaneceu alguns segundos antes de dar ré. Estamos só lhe avisando que já demos entrada na intervenção, e você está proibida de entrar lá até ulterior decisão da Justiça. O interventor, neste momento, já se encontra com a polícia fechando os supermercados, disse a advogada com ar de superioridade.   


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.09.2023 – 12h52min.



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