terça-feira, 29 de agosto de 2023

UM PEDAÇO DA ALMA FOI JUNTO

 


UM PEDAÇO DA ALMA FOI JUNTO


Marquei um ponto no relógio para sair de casa. Dez e meia. Daqui pra lá faltam quatro horas, e não sei se vou resistir ao jejum desde ontem para completar as doze horas. 

São uns exames de sangue atropelando minha rotina que estão me deixando ansioso. Não tanto pelos exames em si, mas toda a logística envolvida em enfrentar o trânsito, falar com pessoas etc. 

A trabalheira começa desde o estacionamento até as agulhas que irão perfurar minha pele. É tipo perfurar poços de petróleo no deserto. Se a camada da crosta terrestre sentisse dor e revidasse os ataques, com certeza, cuidar do meio ambiente seria uma obrigação levada mais a séria. 

No meu caso, os detetives de branco estarão averiguando minha substância vermelha que será torturada dentro de tubos de ensaio até dizer o que sabe sobre a minha pessoa. Estarei totalmente indefeso quanto a um desvio da verdade. Poderia pagar ao sangue para encobrir meus defeitos genéticos, mas não, eles seriam descobertos mesmo assim. Minha essência líquida estará lá para provar o que nem sei o que possuo. 

Acredito que num futuro próximo haverá um aplicativo em que bastará uma gota de sangue para apontar até que tipo de comida foi ingerida há dez ou mais anos, inclusive com o dia e a hora que houve a completa expulsão do organismo. Enquanto não chega esse dia, vamos ter que viver pra lá e pra cá.  

Você não pode ultrapassar as catorze horas sem se alimentar. Tudo bem, respondi à atendente assim que a clínica das seis horas abriu. Desde então, só desce para o estômago a saliva avisando que o café dos outros está sendo saboreado. O cheiro vem aqui, e mesmo eu dizendo não, o organismo, acostumado com o horário e tudo mais, fica pedindo saciedade. 

Fico pensando se tomarei banho. Por mim, não, mas quem vive em sociedade tem que prestar atenção aos comentários que podem surgir por estar com mais de muitas horas sem se banhar. Que bicho mais ensebado, as técnicas de enfermagem irão dizer. Você viu?, todo arrumado mas sem um pingo de cheiro agradável. Não que eu esteja fedorento, no entanto basta não estar cheiroso para ser motivo de comentário maldosos. 

Elas são orientadas a lavarem as partes antes de irem para o trabalho, e quando sentem que alguém não fez o que foi orientado nos cursos, passam a atirar conversinhas aos pés de ouvidos. 

As dúvidas existem para me torturar. Será que vai ter porteiro exigindo um cumprimento? Vou preparar logo um bom dia acompanhado de um sorriso falso, só assim terei pulado essa barreira sem nenhum trauma de ter causado uma sensação de desprezo. Haverá quantas pessoas na minha frente? Acho que vou comprar a vez. Odeio esperar, e se oferecer uma boa moeda de troca, quem sabe eu consiga passar à frente. Acho melhor ir de Uber. Se for a pé, ficarei suado e não serei perdoado pelas fofoqueiras de plantão. 

São três robôs anotando e checando os números dos documentos, aqui na sala de espera. Já passei pela angústia de ficar esperando nos semáforos, agora não mais preciso deles dentro desta sala, no entanto, aguardo. 

Uma voz anuncia que devo me dirigir a tal lugar. Olho de lado para os que não foram chamados e tenho vontade de dizer: chupa que é de uva. 

Alguém veio me acompanhando para falar sobre o meu endereço, qual o convênio e muitas outras informações que não gosto de repeti-las. Ela fica empolgada por estar ajudando à minha sobrevivência, e eu por saber que tenho alguém para falar no meu lugar.

Pode se sentar. A jovem vestindo branco, com unhas enormes, está sentada no birô à minha frente. Quando estiro o braço para ela tirar a pressão, tenho vontade de descansar as mãos em um lugar macio. Ela sente que foi isso mesmo que pensei, é tanto que se afasta um pouco ficando na defensiva.  

Qual o melhor braço? O direito. Ao todo foram retiradas várias ampolas de sangue. Fiquei olhando aquele líquido vermelho dando-me adeus. Nunca mais os verei. Alguns glóbulos viraram a cara e continuaram escorrendo de tubo afora.  É nisso que ganhei em tê-los alimentados durante muito tempo. A ingratidão sanguínea é triste. Estão indo me denunciar pela farinha de trigo ingerida, a cachaça tomada, o açúcar em excesso. Vão todos agarrados uns aos outros sem medo de me denunciarem, pois sabem que serão descartados logo que confessarem toda a verdade. 

O resultado é só daqui a dez dias. Está se sentindo bem? Sim. Levanto-me da cadeira imaginando que aquele estabelecimento tem um convênio com alguns vampiros. Foi tirado tanto sangue que dava para alimentar um montão deles.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 12h15min.



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