quinta-feira, 10 de agosto de 2023

UM DIA DE DOENTE

 


UM DIA DE DOENTE


Tenho que ficar em jejum a partir das dezenove horas e tomar água só até às vinte e duas. Amanhã ela fará exames e ele na função de guarda-costas. Desde às duas da madrugada que não dormi mais. Ele acordou já pensando em fazer sua bomba de cuscuz, ovos, carne, queijo, engolir e pegarem a estrada. Ela permanecia deitada voando na ronceirice. 

Faltam apenas quarenta minutos para sairmos. Havia uma chuva fina com vontade de deixar as pessoas na cama. É só às sete o exame. É, mas precisamos chegar no abraço das seis para poder estacionar. Conseguiram entrar no carro no último suspiro das cinco. Sua mania era digladiar com o relógio usando como argumento que é preciso pensar num pneu magro, num trânsito gordo, tudo isso come tempo.

Conseguiram uma calçada descompromissada e ficaram esperando no pódio dos primeiros a cruzarem a porta de vidro restando se contentar com a faxineira para entreter os olhares nunca olhados para aquele lugar. Esta mulher velha já faz uns duzentos anos que trabalha aqui. A coitada passando a vassoura no chão sendo avaliada pelas suas pelancas balançando e torcendo para que a aposentadoria lhe mande para casa aguentar o marido se queixar que não consegue mais levantar a cabeça com tanta dor na coluna. 

Bom dia!, chegou a médica dizendo que ia se arrumar. A televisão estava ligada no “agora é lei construir espaço pet nos condomínios.” Chegou uma paciente falando seu endereço como se precisasse daquilo para ter a certeza de que não era moradora de rua. 

Ele olhou para sua esposa e a viu com os braços apoiados na cadeira da frente dando a entender que estava tirando uma soneca. Ledo engano. Apenas entediada esperando um tubo entrar de goela abaixo. Endoscopia era o que tinham ido fazer.

A mulher vestindo branco chamou o nome dela dizendo que depois chamaria o acompanhante. Deixe os óculos. Ela foi batendo nas cadeiras por não enxergar onde estava pisando. Não sou tão cega assim, não. Foi só um descuido.

Ele ficou olhando para a tela maior onde estava escrito as manchetes do dia que não lhe interessavam. Uma mulher de azul veio pegar um pouco de café na máquina intitulada “cantinho do café." Por certo em casa não tinha e veio escapar no trabalho. O mundo girava em torno dos padrões de uma clínica com cada compartimento escondendo as habituadas com aventuras de tirar sangue etc. As pessoas que estavam chegando diziam, mecanicamente, os cumprimentos de praxe com vontade de estarem sendo servidas em hotéis de luxo, e não naquela rotina desgastante com zero de criatividade. Mas é isso, a vida tinha pregado peças e hoje se encontram felizes por terem um emprego de pagar contas. A lei as proíbe de optar pelo suicídio, assim a única alternativa é permanecer fazendo parte do exército de reserva. Elas devem ter estudado apenas para aprender a fazer o básico útil em manter a engrenagem funcionando. 

Um homem alto chegou com jeito de dono do meio de ganhar o dinheiro. Cabisbaixo também se sente vítima do sistema. Paga impostos, dá o suor em prol de uma organização que ninguém mais sabe quando começou. 

A negra de branco chama o acompanhante. Faça isso e aquilo e foi se trancar no laboratório. A paciente, ainda meio tonta, fazia-lhe esperar pelos quinze minutos de descanso. Vinte e dois graus no frio do ar condicionado o fez desenrolar a manga da camisa. Vou ler um pouco para você. Ela dormiu. Ele parou. Não gosto de falar para paredes com ouvidos.

Daqui a trinta dias vocês acessam o resultado. Já havia mais gente na recepção com seus acompanhantes a tiracolo. Cuidado com a velocidade. Estavam voltando para casa. Deve ter sido batida, não, é prego, falta de manutenção. Tiveram que desviar. Chuva fina no asfalto é sinal de trânsito lento. Quero chegar em casa viva. Estou indo devagar, só que por você está grogue tudo gira mais rápido. Duas horas e meia de vida dedicada a ser acompanhante. Ainda bem que não fui eu a precisar de cuidados médicos. O maior acontecimento da manhã, digno de um sorriso, foi vê-la tomar o desjejum e dormir até ele sair depois do almoço para outras obrigações não tão entediantes. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 10.08.2023 - 15h07min.



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