SONO INJUSTIÇADO
Encontrava-se paralisado em plena avenida. Nem um fio de cabelo se mexia, até porque era careca raspado. As pessoas passavam, olhavam sem nem se dar ao trabalho de parar. Ele continuava com o sol na cara intensificando seu bronzeado. Achavam que estava morto, contudo dormindo era o que estava fazendo. Às vezes roncava, um som grave aqui e acolá, e só.
Recolhido na sua insignificância, permanecia sonhando com um palácio onde era um rei servido por várias concubinas, e sob seu comando havia um homem castrado que cuidava delas. Ele mandou arrancar os testículos do
eunuco sem anestesia, isso o deixava prendendo a urina já quase estourando a bexiga. Se fosse um diplomata que estivesse exercitando sua flatulência e dormindo no chão todo mijado, nesse ínterim ele afrouxou, até que poderia sair nas manchetes, mas com ele ninguém jamais iria gastar palavras com essa sua costumaz rotina.
Continuava deitado, como todo mundo já sabia, mas ficou a pergunta: será que não está se sentindo mal? Bom, eu jamais irei verificar só para satisfazer a curiosidade, a não ser que eu chame os órgãos responsáveis pela saúde pública em público. Pensando bem, é melhor não. Jamais devo impedi-lo de sonhar com caviar e outros luxos só para querer posar de benfeitor dos fracos e deprimidos.
Uma moça passou com saia curta plissada, da cor de creme com recheio de chocolate, meias brancas sem nenhum furo, sapatos vermelhos afivelados, seios desprotegidos furando a blusa branca quase transparente, "pele macia igual carne de caju saliva doce doce mel mel de uruçu" hummmm... cabelo amarrado soltando e amarrando novamente, um batom vermelho me coma, maquiagem suave lambida, mascava chiclete tutti frutti da marca ai que delícia, com seu celular lhe guiando. Eu até poderia ter deixado ela de lado, mas era tão linda que achei um crime não prestar atenção. Ela passou passando e eu tive vontade de ir atrás para ver se o vento dava por baixo da saia mais uma vez. Fiz que não vi, mas vi que estava sem roupa íntima. Voltando para o mendigo... Acho que vou atrás da moça, mas a pauta é para ele. Pois bem!
Sentei-me num bar em frente e fiquei vigiando-o. Horas e horas sem nada além de notar que o cão não saía de perto. Farejava a barba suja, olhava para mim e para outras moças no mesmo traje que eu nem mais ligava de tão cansado. Pedi uma cerveja, depois uma carne assada. Fiquei esperando o mendigo dar sinais de vida e fiquei mascando a carne mal passada que consumia meu salário a cada mastigada.
Olhei para um pedaço espetado no garfo e ouvi o boi: e aí!?, está gostando de me comer? Fiquei meio confuso por não acreditar que era a carne falando comigo. É com você mesmo que quero discutir a relação. Será que pode me soltar desse garfo torto? Tudo bem. Você sabia que é muita violência o que estás a fazer comigo? Eu paguei por você. Mas eu não ganhei nada nessa transação, só muita dor e fogo no rabo. O que é que você quer que eu faça? Primeiro, deixar de usar tanto "que" nas suas narrativas. Em segundo lugar, me coma logo, pois não estou aqui para lhe entreter enquanto trabalha. Passei o pedaço para dentro. Ai, ai, gritava ela sendo amassada pelos meus molares e rasgada pelos caninos. Devagar aí mano! Prendi o pedaço entre os pré-molares e disse: confesse! Eu fui criado numa fazenda longe daqui. Davam-me de comer e beber, até que um dia me botaram em cima de um caminhão boiadeiro e aqui estou. E as sem-vergonhices que você fazia com as vacas? Quem me dera! Tiraram-me esse prazer quando eu ainda era bezerro. Fui direcionado para ser animal de corte, e não reprodutor. Então, pegue dentadas. Engoli. Tô descendo num tobogã, só ouvi o grito.
Quando voltei meu olhar para o assunto do dia, ele já tinha ido embora. Passei a mão na barba, não, não uso barba. Passei a mão no queijo e engoli o último pedaço. Eu ia dizer queixo, mas o aplicativo registrou queijo e para não perder o embalo...
Paguei a conta. O senhor tem trocado? Não, só tenho nota grande, inclusive só esta. É porque o apurado hoje foi fraco e não tenho troco para esta. Na verdade não tenho troco de jeito nenhum. Tô zerado. E agora? Ou o senhor passa depois para pegar, ou deixa tudo por esse valor. Mas o troco é mais da metade. Vamos fazer o seguinte. Eu levo de troco um objeto aí do seu bar. Leve essa cadeira. Para que eu quero uma cadeira? Isto serve para você dobrar os joelhos e encostar a bunda aqui nesse assento, é para isso que servem as cadeiras. Ah, agora sim. Me convenceu . Tá feito o negócio. Saí sem terminar a matéria, mas pelo menos aprendi que cadeira não serve só para dar cadeirada.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 22.08.2023 - 08h39min.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”