sexta-feira, 25 de agosto de 2023

SEMPRE HÁ RISCOS

 


SEMPRE HÁ RISCOS


Saí de casa por volta das cinco e meia. Acho que vou voltar ao banheiro. Aliviado, abro novamente a porta da frente deixando fechada com duas voltas. Enquanto vou descendo os degraus, aproveito para amarrar a chave no cordão da bermuda. Em alguns andares, preciso empurrar as portas corta-fogos, travando-as. Se houver incêndio, fica mais difícil do fogo se alastrar. 

No térreo, dou de cara com o porteiro que vai chegando para um turno de doze horas. Opa, bom-dia! Tenha uma boa caminhada. Olho para um lado e outro atravessando a via depois da motocicleta. 

Vou pela outra rua para não passar em frente ao ponto de ônibus lotado de admiradores de quem se exercita. Na rua deserta, o ar impregnado de garoa no mato baldio transporta-me para o sítio com caminhos de seixos. Queria estar caminhando lá sabendo que na volta tomaria leite no curral.

Era para eles cuidarem melhor dos fundos desses hotéis. Perto de cada esquina, diminuo a velocidade prevendo obstáculos motorizados, trabalhadores ou mendigos. O roteiro já experimentado em outros dias, deixa-me numa segurança desconfiada. A violência me faz ficar atento enxergando perigo em potencial no alguém que dorme debaixo da laje do clube de dança. Se o dono jogar água... Se fosse eu dormindo, não acharia bom acordar com um banho de água servida. 

Uma mulher atravessa a rua em direção à principal. Deve ir trabalhar. Na curva, enxergo outro atleta vindo. Vou correr logo para deixá-lo na poeira. Um barulho de automóvel me faz pular para a calçada esburacada. Se eu der sopa, passam por cima e vão embora rindo. 

Esse atleta jovem deve estar querendo ultrapassar-me. Avisto uma cachorra e um cachorro em início de namoro. Meu radar detectador de perigo é acionado. Deixo de correr e vou andando na calçada. Percebo o cão macho maior me observando. Fecho as mãos em punho. Se ele vier... Os defensores de animais que me perdoem, mas tenho direito à legítima defesa. 

Ele me deixa passar sem latir. A cachorra corre à minha frente, e ele vai atrás ignorando-me. Vou continuar andando sem demonstrar medo. O atleta passa por mim a passos lentos de corrida despreocupada. Quer ver a merda? Dito e feito. Os cães avançaram nele. 

Chego ao calçadão da praia. Vou por essa calçada lateral, pelo menos não sentirei o mau-cheiro dos banheiros públicos. Acompanho, à curta distância, uma corredora vestindo maiô azul. Assim eu corro mais. Seus glúteos me adoram, é tanto que me convidam para que eu vá chegando perto. Ela deve ser corredora de maratonas. Relógio marcador no braço, de vez em quando é consultado. Procuro, sem encontrar, uma celulite. O ritmo é lento, porém constante. Por onde ela passa, outros olhares imitam o meu. Os óculos de sol dela não viraram para o lado nem uma única vez. Poderia passar por ela, mas não tomo a decisão de perder o espetáculo, mesmo assim desvio, já bastante cansado, para a praia. 

Desço a escada de madeira e continuo correndo avistando-a lá em cima. Vá com Deus, princesa, amanhã te verei novamente. Desvio-me das ondas da primeira preia-mar do dia. Ultrapasso um homem velho que deve ter ouvido milhares de conselhos do médico que deixasse de tomar cerveja. Esse mundão azul e o marulhar, pertencem-me. 

Uma moça cata conchas à beira do mar. Vou ter que voltar a correr para não lhe assustar. Passo sem dirigir-lhe o olhar para evitar ser mal-interpretado naquele descampado sem gente além de nós dois. 

É aqui que o serviço de alargamento da praia chegou. Muitas lajotas de concreto colocadas tipo lego vêm em direção ao morro. Vou seguir nessa areia endurecida pelos pneus das máquinas, experimentado se meus passos não afundam. 

Subo as dunas até o asfalto. No final da subida, um atleta tomando fôlego. Passo por ele sem dizer bora!, costume de quem quer correr disputando. Passamos pelas jovens que vieram fazer exercícios no platô. Fico para trás naquele trecho de cinco quilômetros. 

Chego em casa suado e satisfeito, porém vejo na TV: “dois cães bravos matam homem que corria hoje pela manhã nas imediações da praia. O cão maior pulou no pescoço da vítima, ocasião em que o outro aproveitou para imobilizá-lo com mordidas profundas nas pernas e braços. Mesmo os cães tendo sido mortos por um policial que corria armado, no entanto a vítima não resistiu aos ferimentos causados na jugular.” 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.08.2023 - 14h31min



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