quarta-feira, 12 de julho de 2023

SERÁ QUE FOI ASSIM?

 


SERÁ QUE FOI ASSIM? 


Eu fico ou não fico?, perguntava Dom Pedro I ao seu ajudante que estava tentando rascunhar uma frase bonita para ele dizer.  Que tal essa, perguntou-lhe o assessor: se é para o bem das minhas amantes, diga à dona do cabaré que fico. Não, é melhor tentar enganar dizendo algo que possa constar nos livros como se eu fosse um bom rapaz. 

Majestade, tem uns gatos pingados ali fora esperando sua decisão. Quem está aí? O dono do açougue com as contas de carne que o senhor manda buscar e já estão atrasadas há vários meses; o padeiro também, verdureiro, até a dona da loja de tecido veio saber se o senhor pretende fugir sem quitar os débitos. E o povo? Tenha paciência Majestade, o povo foi trabalhar tentando encontrar uma forma de pagar os impostos que servem para nossas festinhas privadas. Assim fica difícil governar esse desgoverno. Só porque dia sim dia não promovo festas aqui no palácio, esse povo acha que vivo no bem bom. É muita responsabilidade acordar logo cedo para ir cavalgar, praticar tiro ao alvo, pegar algumas mulheres e depois almoçar rodeado de bajuladores. Eles não sabem o quanto preciso fingir ser outra pessoa para aturá-los, não é mesmo assessor? Isso mesmo, majestade. 

Naquele 9 de janeiro de 1822, alguém tinha que contactar com o pintor para criar uma imagem de um administrador popular. Procuraram o pintor oficial, porém ele estava num botequim se embriagando por também não receber pelos serviços prestados. O senhor está convocado para ir ver a cerimônia oficial, intimou um dos guardas que saiu à sua procura. Eu vou bem deixar esse tira-gosto esfriando. É melhor a autoridade se abancar e aproveitar porque essa farra está sendo o pagamento em troca de um quadro que fiz para a esposa do dono daqui. O guarda sentou-se e logo o pintor assoou o nariz dentro do copo do guarda, sem ele ver, e colocou de volta na mesa. Ficaram os dois comendo e bebendo enquanto um dos subordinados saiu para fazer o relatório do que estava acontecendo.   

Majestade, o pintor foi encontrado transando com o guarda no banheiro de um botequim aqui perto. Está tão embriagado que apagou de vez. Tragam-no assim mesmo. Preciso jogar água na cara dele e açoitá-lo por estar bebendo em plena segunda-feira. O senhor também já bebeu, majestade, por sinal está quase sem se segurar nas pernas. Eu posso, e saiba que você é mesmo que ser meu irmão. 

Trouxeram o bêbado pintor, ou o pintor bêbado, ninguém sabe ao certo, o que consta é que a cachaça saiu todinha depois de umas boas laboradas de couro cru nas costas. O pintor logo ficou sóbrio pronto para memorizar a farsa, e para protestar, resolveu assumir, de mãos dadas, o seu novo amante. Umas das exigências do pintor foi que ele ficasse com a espada de fora, só que os registros oficiais não explicam que espada era essa. 

Podemos começar?, perguntou Dom Pedro. Majestade, eu ainda não consegui pensar numa boa frase. Eu mesmo escrevo. Sentou-se, tomou mais uma e... Pronto, depois os escribas dão uma melhorada. O importante, neste momento, é acalmar os meus credores. 

Diga a ele que nem venha, disse Dom João VI já prevendo que seria mais uma boca para alimentar, e aquele filho farrista não ficaria bem em um país muito conservador igual a Portugal. O rei estava muito preocupado caso ele chegasse por lá porque poderia tirá-lo do trono e transformar o palácio num puteiro.  

Majestade, Dona Leopoldina ainda não está pronta. O que é que ela tem? Amanheceu com uma diarreia... Já tomou todo tipo de chá e nada de passar. É melhor colocar uma rolha enquanto fica em pé ao meu lado. Pegue aquele cinto de castidade e amarre nela com um saco de algodão grosso para tapar e diga que venha. Ninguém vai desconfiar que por baixo daquela armação o sufoco é grande. Mas ela não vai poder se sentar. Melhor ainda, vamos todos para a varanda que não precisamos de cadeira, pelo menos é uma despesa a menos. 

Leopoldina apareceu pálida segurando nos braços das suas auxiliares. Querida, disso o pintor se aproximando e beijando-lhe as faces. Você está ótima para essa cerimônia. Lá de baixo, veio um estrondo que abalou o palácio. Os poucos que esperavam do lado de fora, pensaram que tinha sido fogos de artifício, mas depois de examinarem o odor, tiveram plena consciência do que tinha sido. 

Saiu a comitiva em direção ao Paço Real, só que no meio do caminho Dom Pedro caiu estrebuchando. Deixe ele!, gritavam os que sabiam do distúrbio. Depois de melhorar do ataque epilético, o cortejo continuou e de lá só se ouvia gritos daqueles cariocas doidos para sair dali e ir tocar pandeiro: o tempo já extrapolou, dizia os que foram pagos para bater palmas. Calma, gritava de cá a Marquesa de Santos doida para que Pedrinho, como ela chamava na alcova, permanecesse traindo a esposa com ela e ficasse por ali mesmo, oficialmente. 

Naquela sacada, Dom Pedro, rodeado pelas maiores autoridades do país, pronunciou a famosa frase que depois os escribas anotaram diferente, mas ao pé da letra foi, sem nenhum exagero: vão se lascar pra lá, mas eu fico nem que a vaca tussa.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 12.07.2023 – 09h16min.



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