SEM CONTROLE
Gostava de ficar triste e mais ainda quando esbarrava em uma ideia fixa. Sua tristeza, ultimamente, vinha durando somente algumas horas e esse pouco tempo provocava-lhe irritação. Já havia dormido todo o sono do mundo e permanecia acesa esperando o efeito do calmante para voltar a dormir. Enquanto isso, entrou nos pensamentos que guardava no seu repertório de lembranças que quando jovem não conseguia memorizar o que via.
Logo adormeceu e sonhou sendo uma dançarina famosa a ponto de fazer propaganda de absorvente. Foi dormir novamente, porém antes resolveu colocar o alarme para lhe dar a sensação de que tinha compromissos. Daqui a uma hora estaria se arrumando para sair.
Acendeu a lâmpada para se ver e ter a certeza de que existia em carne e osso, e essa dúvida surgiu ao se sentir invisível depois que uma mulher ficou de ligar e não ligou para saber se ela já havia definido o preço da palestra para crianças.
Escutou o barulho de uma motocicleta e foi até a janela para identificar o veículo, entretanto constatou que era apenas o som criado pela própria autoestrada, ou seria sua mente?
Acredita que está assim porque tomou cerveja e sua percepção segue o padrão da tontura. Está em dúvida se vai se levantar às quatro da madrugada ou deixar chegar mais perto para poder meter dos pés.
Fica a se perguntar como ficará sua vida depois que a mãe morreu. Quando ela adoeceu, preferiu deixar um casamento apalavrado para se dedicar aos cuidados com a enferma. Abriu mão do casamento, filhos e um lar todinho dela em troca de ficar ao pé da cama cuidando e agora encontra-se sem rumo nem prumo por testemunhar sua motivação maior ter sido enterrada.
Questiona-se se preferiu isso a ter o trabalho de educar crianças. Olha para o leito com coisas penduradas no suporte do soro sabendo que vai ter que se livrar daquela parafernália toda.
Não tem mais como voltar ao tempo que era noiva. O noivo casou-se com outra e já é quase avô. Olha para trás e percebe que pegou o bonde errado da vida, e o pior é que não lhe deram a oportunidade para ensaiar.
Recentemente visitou a cobertura de uma amiga e se entusiasmou porque em plena avenida havia um local para plantas, inclusive um pé de jabuticaba. Abre outra cerveja sem paciência de curtir esses devaneios irritantes.
Só imagina como vai ser ruim deixar a amizade dos terapeutas, médicos e auxiliares que viviam em torno da moribunda. Vinte anos convivendo com uma doença inibidora dos movimentos a transformou em frangalhos. É como se uma parte dela tivesse sido enterrada junto com sua genitora, e o resultado disso tudo é uma mente atrofiada por só ver doença em sua frente. Há muito não ler, assiste um filme ou passeia. Tornou-se refém achando que ela nunca morreria.
Conta as horas que estão distanciando-a do que era sua antiga razão de viver. Seus cabelos brancos denunciam que daqui a pouco ela mesma terá que ser cuidada, por isso tem pressa em resolver o que fará daqui pra frente.
O único irmão morreu de cirrose, e terá que se defender sozinha no tribunal acusador de que matou a mãe sufocada com um travesseiro. Apesar das gravações comprovarem que entrou em transe na hora do assassinato, seu senso de consciência ficou em suspensão.
Já desconfiava que tinha dupla personalidade quando, certa vez, passou por cima de um homem apenas para ver como seria matar um humano. Acha natural sua antiga mania de comprar animais de estimação com o objetivo de afogá-los na banheira.
Num raro momento de lucidez, percebe a necessidade de se manter contida por não ter controle das suas alucinações, diz para si enquanto se pendura nas grades do sanatório em que está internada e grita defendendo a eutanásia.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 18.06.2023 - 10h43min.
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