FORÇAS ESTRANHAS
O menino também vinha tropeçando na própria fraqueza. De vez em quando, pedia água da cabaça amarrada ao jumento. Jogar fora algumas bacias para acomodar a mulher e o menino menor, estava sendo uma decisão adiada. O apego aqueles cacarecos não permitiam tal luxo. Aguardavam ansiosos que na próxima curva aparecesse um lugar bom para acampar, e, quem sabe, fixar moradia.
Mais uma ladeira vencida e nada do sonho se tornar realidade. Um cardeiro forçou a parada oferecendo frutos vermelhos. Aquela abundância sem concorrência, significava que estavam perdidos num caminho abandonado há muito. Precisavam achar água para os animais que desde o dia anterior ficaram sem. O sol se pondo não ajudava muito naquela tarefa. No pé da serra deveria ter um olho d'água, pois avistaram um verde para o lado de fora do caminho. O jeito era ir verificar.
Dentre tantas coisas, sacolejava um rádio pronto para ser trocado por alimentos, caso encontrassem um pé de pessoa. O jumentinho havia morrido no dia anterior e isso poderia ser o motivo pelo qual o casal de animais já não atendia de pronto aos comandos.
A mulher, descabelada, só pensava em mandar o marido arrancar aquela dor latejante. Da última vez, sofrera hemorragia, porém morrer ou viver no sofrimento não havia muita diferença. Um a menos naquela boca com poucos não faria falta. O difícil era enfrentar a ponta da faca cortando a gengiva. Devia ter sido por isso que na noite anterior não quisera aconchego, pensava o marido enfaixando o dedão do pé agora já bastante inflamado. Tanto que criticava os retirantes, agora encontrava-se na mesma situação. Se não fosse a ameaça de morte, jamais teria abandonado o seu torrão. Não tinha como voltar. Uma faca usada não era páreo para fuzis.
Da poça restava apenas uns dois metros ladeados por um verde rasteiro. Deu para saciarem-se antes que a umidade desaparecesse. Ficar sem fazer nada é mais útil do que fazer o inútil, pensava ele enquanto arrumava três pedras no preparo do café. Ainda encontrou a borra guardada da última ceia.
O menino de braço, agarrado a uma teta quase sem leite, esperneava demonstrando contentamento. A noite chegava trazendo mosquitos em busca da claridade oferecida pelos gravetos crepitando. A carne do jumentinho foi oferecida aos três num mastigar silencioso quase pedindo desculpas aos pais que pastavam além da umidade.
O sal da carne aumentou a dor no pré-molar. Traga a cachaça e a faca. Assim mesmo no escuro? Não vou passar mais uma noite de sono. A luz da lua ajudou tanto quanto a prática do marido. Não houve quase sangramento. A blusa esfarrapada serviu de lenço no limpar da boca. A dormida só não foi pior porque apenas chuviscou. Na loca da pedra, os quatro conseguiram escapar do molhado insistente. Deu para salvar a roupa e o rádio secos.
De madrugada, ela acordou com a dor intensificada do lado direito da face. Passou a mão e percebeu que estava inchado. Ainda sob o efeito do álcool, demorou um pouco para perceber que seu bebê estava sendo atacado por ratos selvagens. Os bichos haviam dilacerado alguns dedinhos dos pés e a criança, sem forças para alarmar, só choramingava. O marido, com seu sono pesadíssimo, também foi visitado pelos roedores afastados pelos primeiros chutes da mulher cuspindo sangue. Os cortes haviam sido superficiais, e o bebê logo estaria sarado, deu para perceber ao amanhecer. Com a falta de leite, restou dar a ele a popa adocicada colhida no dia anterior.
Uma febre alta atrasou a viagem em um dia. Ela delirava vendo ratos jogando futebol narrados pelo rádio sem bateria. O marido examinou onde ela acusava ferimento, entretanto nada foi encontrado. O menino maior abria um preá caído no fojo armado antes de dormirem. Era bem melhor do que carne de jumento.
Mais uma noite passada na loca, desta vez sem os espinhos de urtiga que impediram, na noite anterior, uma melhor acomodação. Ainda bem que haviam conseguido espaço suficiente para escaparem da tempestade que se seguiu do finalzinho da tarde até o outro dia. Teriam que deixar a metade da carga, pois o jumento amanheceu carbonizado pelos raios caídos durante a tempestade.
Com a chuva, serpentes caçadoras de ratos saíram dos esconderijos para picarem quando o menino foi tirar mais um preá do fojo. Já estava deitado e cego quando o pai trouxe casca de ipê para ele mascar.
Depois que enterrou o filho, resolveram sair daquele lugar. A cada passo, uma árvore balançava sua folhagem. Lá do alto, a mulher virou-se e então percebeu rochas, em formatos de rostos envelhecidos, fitando-os.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 16.02.2023 - 14h44min
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