DESORDEM NATURAL
A criança arrastava-se no chão da casa de taipa. Estava acostumado a comer barro e naquele momento, logicamente, engatinhava em cima da sua refeição. A mãe lavava a pouca louça usada no café da manhã e o pai havia saído para pastorear o gado do patrão juntamente com os dois filhos maiores. As outras quatro filhas permaneciam esmorecidas pela gripe devastadora.
Uma situação de risco pairava naquela família, pois moravam perto do rio e nessa época a fome obrigava crocodilos a irem além do seu território. Eu sei onde tem comida boa, pensava um deles indo em direção à cabana. O bom de comer gente é que eles não possuem penas, cascos ou espinhos distribuídos pelo corpo. São macios de dar água na boca, sussurrava o lagarto de três metros com seu andar experiente de quem já havia comido a avó na seca passada.
A mãe deixara a porta aberta para que um dos filhos pudesse ser levado pelo bicho. Tinha muita gente para dar de comer e um a menos seria o ideal nos planos da mãe cozinhando algumas batatas para o almoço.
O pequeno buliçoso se pendurou na borda do tacho no exato momento em que o bicho ia abocanhá-lo, instante que a água quente derramou-se cegando o jacaré e salvando o inocente que foi condecorado por ter ajudado a conseguir carne fresca, mesmo tendo suas mãos queimadas.
Passaram-se meses sem muita novidade. Aqui e acolá o canto do pássaro de mau presságio irritava quem olhava para o céu coçando a cabeça com um pouco de desespero velado.
Todos os sábados, uma ida à vila para comprar açúcar, farinha e pão quebrava um pouco a rotina do pai. Os meninos ficavam ansiosos para comer um balaio inteiro dos doces, mas às vezes tinham que dividir um para dois. Os personagens envolvidos nos pesadelos de todos tinham a ver com produtos comestíveis na sua mais intensa carência.
Depois da hora do almoço, a mãe pegava seu cesto de costura e ia tapar buracos, pregar botões e fazer fuxico para trocar por óleo. A mulher da venda recebia as colchas e as colocava em exposição com lucro de duzentos por cento.
Eles nem sabiam que viviam entediados, e só descobriram que a menina mais velha estava com depressão quando ela foi fazer o pré-natal. O filho foi gerado no roçado, mas ela não disse de jeito nenhum que era de seu pai.
O pedaço de carne seca, pendurada no jirau, era motivo de cobiça, não só pelas moscas que passavam o dia zunindo ao redor dos pratos sujos. Quando a mãe descuidava-se, uma das filhas trepava no ombro da outra para, com uma faquinha bem amolada, surrupiar uma “nesga” sem deixar vestígio denunciante.
As outras ficaram com inveja da barriga da grávida estar sempre cheia, pois achavam que a protuberância era proveniente de muita comida. De fato, ela recebia um pouco a mais de ração diária a mando da mulher do posto que conseguira suplemento de aveia.
Recentemente um vaqueiro veio comprar uma delas, só não tomando posse porque ficou de ir arranjar mais dinheiro ou uma cabra parida. A negociação levou mais de uma hora debaixo do carandá e só ficou apalavrada depois que, a mando da mãe ameaçadora, caminhassem para que o homem pudesse vê-las indo buscar água, usada como pretexto para realização do desfile.
Arrumadas com os vestidinhos de sobras doadas, um calafrio percorria a espinha das meninas há pouco saídas da infância. Será que terei comida para onde vou? perguntou a escolhida ao homem que pouco conversou. Saiu aparentemente satisfeito com o comprimento do cabelo da sua futura "mulher-menina". Não era bonito, porém tinha três vezes o tamanho dela.
O parto aconteceu em casa mesmo. Devido as dificuldades para levar a filha à maternidade, a mãe, auxiliada por uma distante comadre, resolveu tudo sem precisar de parteira. O sofrimento ficou longe dos outros que foram mandados para dormir no mato e que só voltassem quando fosse dado o sinal. Podia demorar o tempo que fosse, quem desobedecesse teria as orelhas pregadas no tronco do castigo.
A criança nasceu com uma anormalidade monstruosa. Filho de pai com filha, seu destino foi logo traçado pela satisfação dos crocodilos devorando-o na beira do rio. Os pequenos, escondidos na mata, assistiram a carnificina sem nem poder chorar alto.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 24.02.2023 - 13h46min
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