segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

DESAFIOS DA CONVIVÊNCIA - Heraldo Lins

 



DESAFIOS DA CONVIVÊNCIA 


Fazer o quê? Mantenho minha árvore da sabedoria adubada e bem hidratada, porém as folhas tendem a cair frequentemente. É um trabalhão conseguir quinze minutos de conversa aprumada com alguém que simplesmente diz que nunca ouviu falar dos teóricos que cito em alguns momentos do papo.

 

A tendência é, cada vez mais, optar em saber apenas fofocas. A "fofocagem" tem tanta força que um sábio teve suas obras renegadas desde o momento em que publicou fotos assumindo um romance de mais de cinco anos ao lado de um namorado. É mais interessante, para uma grande parcela da população, saber qual o uso que a pessoa faz das partes íntimas, do que o próprio trabalho. Se nossa sociedade continuar a dar mais importância aos furos entrepernas do que ao conhecimento, vamos continuar a ser nivelados a bactérias, ratos, baratas, piolhos, cupins etc.


Um dos responsáveis por desvendar os códigos secretos dos alemães na segunda guerra mundial era gay. Salvou milhares de vida usando sua inteligência, mas os seus sentimentos destoantes da doutrina vigente fizeram dele um marginal que somente teve seu valor reconhecido vários anos após sua morte. Acredito que se tivesse vivo, diriam: vamos primeiro deixar morrer para depois reconhecer.


Isso acontece também com as mulheres. O pino que carregam não pode roçar em outro pino, senão a desgraça está feita. Uma delas, cantora famosa, teve seu nome apagado do rol de alguns seguidores simplesmente porque declarou gostar da mesma fruta. 


Dizem que o trabalho dignifica o humano, mas não é só isso. O "frutificai e multiplicai-vos" é soberano e traz, nas entrelinhas, uma baita discriminação. Se a pessoa optou em não passar adiante a genética humana, esse deve ser visto como um traidor da raça a ponto de ser liberado para extermínio, mesmo tendo um trabalho memorável.


Essa questão da procriação é tão enraizada na nossa cultura, que se a pessoa entra em contato com alguém desconhecido numa conversa informal, antes dos primeiros cinco minutos de diálogo vem a famosa pergunta. Se tem vários filhos com várias mulheres também não serve; morar sozinho passa a ser visto como alguém fracassado por não ter tido habilidade em compartilhar. Ou seja, se é hetero ao extremo, é malvisto; se é homo, também. Enquadrar-se no padrão imposto não é fácil. Ter um vício, nem pensar. Ser preto é um pecado a ponto de dizerem que esses são descendentes de Caim. E velho? Esse “tá lascado”. Uma prima disse-me que nunca vai ser velha. É como se ser velho fosse uma praga. Elvis Presley tinha pavor de lidar com a ideia de envelhecer. Eu, particularmente, já adotei o cartão de estacionamento, e a raiva que eu tinha por não ter o privilégio de estacionar perto, agora acho graça. O senhor deve ir para a “fila de prioridade”, disse-me a mulher quando viu meus cabelos brancos. Que bom, passei à frente de quem ficou mangando da minha cara amassada. Só não deixei o dedo médio visível e os demais ocultos porque seria falta na grande área.   


Dizem que quando não se pode com o inimigo, junte-se a ele. Foi o que fiz com o tempo. Abracei esse carrasco que não está nem aí se a pessoa é hetero, homo, preta, branca, amarela, desbotada, pobre, desvalida, miserável, rica, jovem, velha, mocreia, bruaca, gorda, magra, sarada, despencada, feia, horrível, monstruosa, bonita, linda, chata... façam todos uma boa viagem, diz ele empurrando-nos para o buraco da igualdade. 


A dúvida que fica é se o preconceito e o tempo morrem com a gente ou permanecem vivos durante a decomposição. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN,  26.02.2023 - 07h12min





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