quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

VIOLÊNCIA E DISTÚRBIOS ANDAM JUNTOS - Heraldo Lins

 


VIOLÊNCIA E DISTÚRBIOS ANDAM JUNTOS


Havia um jardinzinho para estimular quem quisesse se casar com uma das quatro. Era a isca para ficar namorando sem saber que estaria sendo observado pelas outras através das janelas de vidros escuros. 

Vim falar namoro, mas preciso estar a sós com ela por um bom tempo. Concedida a permissão e aceita pela pretendente, no banco o assunto girava em torno de se casarem e levar as irmãs como concubinas. Meus pais querem nós todas bem casadas, e isso vai dar no que falar. Levaremos eles para morar em uma casa ampla e ninguém vai perceber que somos todos uma família muito unida.

Elas também não aceitariam, a não ser que eu pudesse ficar com seus irmãos do mesmo jeito que você ficaria com as minhas irmãs. 

Na sua existência de mulher, já havia pensado nisso, e agora chegava um com a mesma ideia. Que coisa maravilhosa! Seus irmãos concordariam? Sim, já falei com eles, aliás já fizemos parte de uma junção assim no passado, agora com essa guerra, queremos reiniciar esse sistema de produção de gente. Se vocês esperavam alguma coisa de inédito no casamento, é melhor se adaptarem a essa escassez de homens. 

Naquela guerra sem fim, os mais jovens tinham sido convocados à força para morrerem no campo de batalha. Os dois governos estavam fingindo um conflito com o objetivo de ficar com os bens das famílias exterminadas. Os chefes trocavam informações combinando em qual frente haveria carnificina. Com os recursos naturais esgotados e a falta de perspectivas, as famílias eram submetidas a todo tipo de proposta, e aquela de fundar núcleos familiares coletivos era a tendência nos últimos anos. Nada de

passeios, festas, teatros. Toda a energia seria direcionada para a reprodução, e quem não engravidasse seria mandada para o front.

Elas, ao lado dos maridos, passeavam nos escombros sem grandes emoções e nem sonhos naquela trivial vida, entretanto tinham assegurado o carinho do sexo oposto. 

Com o passar das bombas, ficaram fartas de verem o pai na janela esperando chegar a hora de ir buscar a sopa distribuída pela ajuda humanitária. Aqueles escombros e as imagens de pessoas carregando baldes d'águas não despertavam interesse, e mesmo assim tinham que ficar alegres por seus maridos esfarrapados carregarem no lugar delas. Eles pelo menos tinham parentes importantes e ficou mais fácil conseguir cobertores. Os padrões morais já haviam deixado de ser cobrados desde que muitos pais engravidaram as filhas. Havia incentivos para gerar gente e enviá-los para a guerra com promessa de um naco a mais de pão. 

No começo, sentiram um certo contentamento, porém com os saques e a escassez de alimentos, tiveram que emboscar os maridos e fazer guizado deles. 

As barrigas crescendo junto com o abandono, promoveu um distúrbio psíquico levando-as a servirem-se dos pais como carne de churrasco, e agora só restava alguém dar cria para que houvesse um novo petisco na dieta, o que de fato aconteceu com o filho da irmã mais jovem indo para a panela e aquela mãe salgada e guardada para os próximos dias. 

Restaram as três que nem dormiam direito com medo do complô das outras. Enquanto a guerra era travada bem mais longe a nível de tanques, ali naquela ruela deserta as três mantinham suas trincheiras montadas por trás das pálpebras. Sabiam que quem dormisse primeiro seria vítima das outras duas. O instinto de sobrevivência levaram-nas ao mais alto grau de ferocidade a ponto de uma delas cortas uma perna para doar em troca de três horas de sono. Fartas pela carne da perna, ficaram namorando com um dos braços. Logo no terceiro dia, não suportando a inflamação, salvaram-na de um fim terrível, comendo-a crua e sem sal.

Não raro ocorria saudades de uma comida mais leve, e para isso a mais forte deu um corte na outra e aparou o sangue na frigideira misturando com cebola e alho feliz por ter sobrevivido a mais uma passagem de ano novo.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 03.01.2023 - 16h31min



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