VIDA NOVA
Enquanto a seleção brasileira perdia para a Croácia, eu perdia a vida. Na sala da UTI, ninguém da família para me dar o último adeus. Era tanto tubo enfiado na minha garganta que nem falar eu podia. Furaram a veia aqui perto do pescoço e, para que eu não retirasse os tubos, amarraram-me na grade da cama.
Visitas, só uma pessoa por dia, assim, fiquei proibido de ser olhado pelos sete filhos. Eu, que tanto prezava “adjunto de gente”, fiquei somente acompanhado pelos aparelhos apitando de acordo com minhas pulsações. Há vários dias, nem me lembro quantos, eu tive que ser entubado. Meu coração não resistiu a tanta agressão. Agora, aguardam a funerária para levar meu corpo para o “interior” e ser sepultado na cova da família. Vejo, aqui do alto, descendentes esforçando-se para liberar o que restou de mim.
Ainda bem que acabou o sofrimento e já estou aqui do outro lado acompanhado pelos irmãos e irmãs felizes para me ajudar na travessia. Preciso apenas acompanhar o féretro, para depois, adeus.
Agora, faço parte de outra dimensão, entretanto ainda estou por aqui até amanhã quando depositarem a matéria no cemitério. Foi muita luta depois de noventa e três anos de existência. Comprei gado, vendi, construí família e, nesses últimos dias, senti muita vontade de morrer. O sofrimento era enorme. Doía em "todo canto!" Foi preciso ministrar morfina, agora, sinto-me sarado de vez.
No tempo em que havia algodão, fui comprador. Fornecia para a usina depois que comprava dos pequenos agricultores na feira do sábado. Trabalhei muito, tanto no roçado quanto no comércio. Quando eu era jovem, queria ficar velho para ver como seria. Esse sonho foi realizado. Em morrer, eu só pensei de "ontem pra cá".
Uma das pessoas que está morta, perguntou-me se eu estava preparado para deixar meu sítio, gado e a casa com tudo dentro. Queria ficar mais tempo... eles deram uma gargalhada. Não se apegue a esse mundo senão é pior, disseram-me: chegou sua vez e só resta finalizar para partirmos.
Minha mulher veio brigar, há pouco, comigo. Disse que eu deixasse de ser teimoso, pois eu não estava vivo. Como não estou vivo se estou conversando? Ela disse que era assim mesmo, e que nem com a morte eu mudava esse costume feio de questionar tudo.
Vejam só como é o destino. Eu sempre dizia que os médicos era uma "corja de ladrão de branco" que inventava doença para ganhar dinheiro. Foram eles que me acompanharam até o começo dessa nova etapa. Estão me dizendo que minha vida começa a partir de hoje num plano diferente. “Tô pagando pra ver”.
Há mais de quarenta anos que eu tomava dezesseis comprimidos diariamente por causa do infarto. Recentemente, trocaram o marcapasso e foi quem me deu alguns dias a mais de vida. Vou ser enterrado com ele.
Nunca pensei que fosse chegar ao ponto de, até para chegar à cama, precisar de duas pessoas me levando. Logo eu que vivia em cima da sela campeando gado, caçando barbatão. Tomar banho, passar pomada contra assadura, alguém fazia por mim. Eu que tinha ciúmes do meu “cano de escape”, agora até a pessoa que está preparando meu corpo, para ficar bonito na hora de enterrar, fica passando pomada perfumada. Acho que ela tem medo do meu último suspiro na hora da missa.
Eu pensava que minha mulher estava viva. Só me diziam que ela estava no hospital, internada. Há pouco, soube que ela havia morrido em maio passado. Será que tinham medo que eu desmoronasse de vez se soubesse que ela tinha falecido?
Ela está aqui implicando. Mesmo depois de mortos, continuamos brigando. Percebo que as rugas desapareceram todas. Agora ela está bem novinha, e acho que eu também. Se eu soubesse que a gente renovava, já tinha apressado esse negócio.
Vejo a família chorando. Ah, se eles soubessem como é bom morrer. Pois bem, agora sei o que é deixar de viver, só não estou gostando é ter que aguardar o barro cobrir o caixão para que eu possa entrar nesse portal de luz. Nunca gostei de esperar, mas vai ser o jeito.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 10.12.2022 - 15h:58min
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