segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

UMA ESMOLA PARA O REFLEXO - Heraldo Lins

 


UMA ESMOLA PARA O REFLEXO


Mais uma vez, acordei debaixo de uma marquise procurando me esconder da chuva e do frio. Fico a imaginar que estou acabado por não ter nem um telhado para me abrigar. Meu corpo fede, mas tenho que me manter sujo para ficar protegido dos mosquitos. Tenho um pão no bolso, fome não falta, porém preciso deixar para quando estiver mais “apertado”. Ontem, acordei todo molhado do vento úmido da madrugada.

Já está perto do natal e nada de ficar contente com essa falta de Norte. O que farei? Estou sendo demitido da vida cada vez que não consigo seguir o manual de sobrevivência.   

 Só vejo muralhas ao meu redor. Minha cabeça dói só em tentar uma ideia de como sobreviver sem muito esforço. Comi um chocolate com mel para ver se o combustível do cacau pudesse me trazer algo tão animador quanto a própria guloseima.  

Ainda há pouco, veio um sócio me visitar dizendo que os negócios estão indo de vento em popa. Nessa época, há muitos donativos, já que as pessoas se compadecem, e assim, tiramos o “pé da jaca”. Eu só tenho medo é de manifestantes pedindo que a prefeitura tome providências contra o feio, tendo em vista que somos, além disso, sujos e malcriados. 

O sofá vermelho, sem as pernas, é testemunha de que permaneço fazendo jus ao “podre da sociedade”. Os cães estão do outro lado do portão, no jardim de chão gramado e limpo, com latidos nos olhos. 

Fico sem saber amarrar as palavras num discurso comovente, então apelo para meu cabelo desgrenhado e barba por fazer. Escuto a bengala dizendo que já basta de se fingir de morto. Somente esses objetos que convivem comigo é que sabem o quanto carrego de fracasso. Tomar água na poça deixada pela enxurrada, é melhor do que passar sede. 

Uma buzina, ao longe, me deixou esperançoso. O carro quase me atropelou hoje cedo. Quando olhei, nenhum veículo vinha. Ao chegar do outro lado, o motorista passou tirando lasca. Eu seria mais um nas estatísticas de corpo não identificado.

Logo cedo, uma mulher saiu com um vestido brilhoso e os pés descalços. Deu para perceber que viera aliviar um solteirão, deixando, para mim, lembranças douradas.   

Não vou ligar para minha família dizendo que estou sobrando na sociedade. Eles viriam, novamente, com o discurso sobre essa minha escolha. 

Papai Noel está posando para que as crianças façam fila nas fotos. É bom andar por aqui porque sempre vemos como as pessoas ganham dinheiro. Um albino cercava o terreno enquanto o comerciante, do outro lado das grades, vendia açúcar.  

Meu lençol furado contribui para que eu possa dormir em estilo ar condicionado fugindo da instabilidade emocional. 

Gostaria de me encontrar com a vida feliz depois que optei em ser mendigo acreditando que conseguiria viver sem apego, sem ganância nem sonhos, entretanto o desconforto material trouxe-me a consciência da dor.   

Hoje é domingo, dia das beldades irem à praia exibir o que a natureza lhes deu de presente, e quem ganha são meus olhos cansados de ver lixo.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.12.2022 - 17h07min



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