DANDO TCHAU À ÉTICA
Ao sair da sessão do cinema, tive a certeza que aprendi a matar. O curso intensivo durou quase duas horas onde fui estimulado a aperfeiçoar a vingança, aplaudir adultérios e vibrar com a tortura.
Vivo pagando para ver sangue derramando-se nas telas, e isso já faço desde quando assistia, na TV preto-e-branco, desenhos do pica-pau. O costume, aparentemente inofensivo, agregou-me a esse mundo através da exposição saturada tornando-me mais selvagem do que os mais selvagens dos animais e ainda me considerando civilizado.
Desde que sirva para gerar renda, o conteúdo "tá de boa". Não é por acaso que gosto de assistir, no horário nobre, notícias sobre assassinatos, desastres naturais e explosões de agências bancárias. O seguro paga, e isso me dá conforto por saber que não houve prejuízo material. É assim que penso: se tiver alguém ganhando dinheiro com banalidades, está liberado para exibição, que tenha ou não crianças na sala.
Lembro-me quando assumi o tabelionato em uma pequena cidade e certo dia me deparei com um enterro. A estranha alegria que senti foi proveniente do dinheiro da certidão de óbito entrando no caixa. Passei a ver mortes apenas como sendo um número copiado no formulário que enviávamos para o IBGE. Naquela época, já existia a monetização e eu nem sabia o que era.
Por gostar de dançar, fui seduzido a participar dos carnavais fora de época. Ontem, no shopping, havia um Rei Momo comandando a venda de abadás para a próxima folia, e eu lá, animado que nem pinto no lixo. Duas garotas, pagas para ser felizes, pulavam ao som se uma banda obrigando-me a ouvir e vê-las por "livre e espontânea pressão". Por mais que eu procurasse uma mesa afastada, tive que engolir o que estava sendo apresentado.
Pagar para assumir o papel de macaco treinado, acho que é uma decisão tomada por quem está "antenado", já que tudo que sai na mídia é ótimo para a produção e consumo.
Seja feliz, diz os livros de autoajuda. Os dados estatísticos mostram que é viável investir no "oba-oba" planejando para um consumidor acima dos cinco salários mínimos. José de Alencar, no livro "Senhora", já relatou muito bem esse casamento das finanças com as alianças. Não é uma coisa nova, apenas atualizamos de acordo com nossa contemporaneidade.
Pelo que vejo, só me resta cantar sem me dar conta que é comigo: "vocês que fazem parte dessa massa..." Mesmo esperneando, sigo "deixando a vida me levar..."
Não tenho mais um querer genuíno. Desde que inventaram a indústria da sedução, tornei-me uma "maria vai com as outras" e nem estou me importando se isso causa dor porque o mais relevante é fazer parte desse público amante de conteúdos duvidosos. Desde que gere renda para as terapeutas, não há nenhum pecado em me sentir depressivo, pelo menos serve para me vangloriar que faço terapia todas as terças e quintas.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 08.12.2022 - 15h:43min
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