sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A VIDA SEGUE PREGANDO PEÇAS - Heraldo Lins

 



A VIDA SEGUE PREGANDO PEÇAS


Fazia algum tempo que Júlia procurava algo mais sério, e por isso o seguiu tentando um encontro casual sem que ninguém desconfiasse que ali persistia um desejo de aproximação. Existia nela algo atraente que predispunha a seu favor e que ela, conscientemente, recorria quando queria fazer valer a sua vontade.

Parecia simples e divertido, afinal os hormônios aflorando contribuíam em demasia para que seus sonhos fossem realizados.

Lembrou-se das histórias sobre conquistas e tomou a iniciativa de forçar a aproximação com um homem que ela só sabia se tratar de um investidor.

− Posso pegar um pouco de sal? − Quando ele assentiu com a cabeça, ela perguntou afavelmente: − O senhor está selecionando recepcionistas?

− Ah, sim, sim!

− Posso me candidatar?

− Fale-me de você, disse ele fixando-se nos olhos azuis e puxando um convite para que ela pudesse se sentar.

Continuaram juntos durante o jantar, depois caminharam às margens do rio Tâmisa iniciando-se uma conversa muito além de uma entrevista de emprego. A companhia queria implementar o novo sistema de identificação facial e ele estava ali exatamente para fazer isso. Dois anos desde que entrara como sócio, era provável passar a ser o majoritário assim que concluísse a tarefa.

Voltando para o hotel, digitou uma mensagem para no dia seguinte encontrarem-se. Ao deitar-se, recordou-se de quanto ela estava alegre ao se apresentar.

Assistindo à chegada de uma embarcação, admirou-se, ainda mais, quando ela confessou sua predileção por palcos, motivo pelo qual ainda estudava canto...

No apartamento alugado para aquela ocasião, ela estava surpresa com a facilidade que disse sim quando foi convidada para ficarem a sós. Parecia que há muito convivia com aquele homem, e de fato tudo aconteceu naturalmente. 

− E eu posso também dizer que fui seduzido por sua beleza. 

Olhava-a nos olhos beijando-a com ternura, e ela se pôs a rir. 

Quando saíram, a cidade apresentava seu show pirotécnico de virada de ano parecendo que haviam combinado a sincronização. 

Encontraram um carro de aluguel e foram aproveitar o réveillon em Windsor.

Ficaram sentados num banco, perto do castelo, olhando em silêncio aquela construção tão visitada, numa completa indiferença em relação à vida. Sentado ao lado daquela jovem mulher, ele pensava encantado com o belo momento que estava vivenciando. 

Regressaram a Londres com ela maravilhada pelos dias seguintes, transferindo-se de vez para o hotel. Não se deixavam por um só momento aproveitando as folgas para os rápidos passeios ao redor da capital. 

− É bom que eu parta − disse ele a Júlia.

Partiu a bordo de um de seus barcos com viagem programada para chegar no dia seguinte. 

No cais, Júlia enxugava as lágrimas com as costas das mãos. Seu rosto avermelhado recebia a umidade daquele final de tarde sem se importar com os lenços agitados pelos outros que ficaram. Luzes se acederam no convés para depois não serem mais avistadas. 

Júlia regressou para seu apartamento com a bagagem já bastante acumulada nesses dois meses de inteira felicidade. A sensação de haver acordado de um sonho, contribuiu em aceitar voltar à rotina de funcionária da companhia náutica.

Não se conformava que aquilo tinha sido apenas uma aventura. Teve raiva de si mesma por não ter desconfiado quando ele se ausentava por alguns instantes. Estivera a falar com a mulher e filhos. Com certeza não o veria mais...  

O parto aconteceu de acordo com a normalidade. Júlia acariciava, junto ao peito, aquela lembrança do único homem que amara. Via no adolescente, que veio a se tornar, a educação em pessoa que o próprio não teve oportunidade de conhecê-lo.

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 30.12.2022 − 11h51min




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