O touro, sendo engordado para o abate, observava o homem sentado à mesa bebendo uma caneca de leite tirado naquela horinha mesmo.
Uma cobra coral arrastava-se querendo lanchar um rato parido há pouco e nem se deu conta que passava entre as pernas do bicho amarrado.
A menina brincava com seu diadema colocando na cabeça do gato, depois na do cachorro enquanto sua mãe a chamava para tomar o café da manhã. Estavam esperançosos porque o filho doutor ia chegar da capital trazendo os presentes de natal.
Na cidade, um tiroteio envolvendo assaltantes de banco alarmava até as pedras do calçamento recém colocadas na rua central.
A ratazana corria para esconder os ratinhos deixando o cheiro da placenta escorrendo na vegetação rasteira.
O filho esperado recebera uma ligação para fazer frente ao assalto no papel de homem da lei em atividade recém-empossado. Dentre os reféns, estava sua tia-avó, logo cedo na fila tentando receber dinheiro.
Naquele mesmo dia e horário, a estagiária preparava as lâminas dos exames no único laboratório da região. Já havia feito coletas, preenchido fichas fazendo jus ao título de menina das mil e uma utilidades que, com rapidez, ocupava-se em preparar o chá para o bioquímico.
O touro deu um pulo ao pressentir a cobra aos seus pés. Ela parou, armou o bote, porém continuou seu deslizar em direção ao celeiro. O cão, ainda há pouco falado, encontrava-se de “antena ligada” acuando a pequena serpente. Seus latidos atraíram o gato e o dono da casa.
O filho colocara o colete a prova de balas e tentava se posicionar perto do rebuliço criminoso. Um dos assaltantes já havia surrupiado o “aposento” da tia-avó chorosa agarrada pela gola do vestido.
A estagiária ligou o rádio e soube o que estava havendo no centro da pequena cidade. O responsável pelos laudos agora também era refém. O chá esfriava em cima do birô dele, e ela, nervosa, correu para o banheiro detectando que o feto de três meses acabara de descer na perna.
A cobra teve o mesmo fim do feto, só que a cabo de pauladas desferidas pelo pequeno agricultor. O gato aproximou-se no momento em que o dono enterrava a coral. O touro deitou-se de barriga cheia e a menina também saciada, levantava-se da mesa.
A mãe continuava lavando os pratos deixados pelos outros que já haviam saído para a escola.
O homem foi consertar a cerca quebrada pelo touro. O cão o acompanhava como se pedisse um afago pela descoberta daquela manhã.
Ao todo eram quinze reféns. As forças federais e locais agora cercavam o bando, esperando... negociando... aguardando o helicóptero que já havia levantado voo da base.
A estagiária se limpava com o resto do papel higiênico em falta pelo esquecimento de abastecer o porta-papel. A descarga veio logo em seguida acompanhada de lágrimas pelo amor desperdiçado.
Os meninos, na escola, acompanhavam o assalto e vibravam porque naquele dia não seria cobrada a lição anteriormente “passada” pela professora. Daqui a pouco seria a merenda, e naquele dia teria biscoito de chocolate.
A menina perguntava, à mãe, a que horas seu irmão mais velho chegaria com os presentes. Ela, também agitada, nem respondeu ocupada que estava preparando o mungunzá para a chegada do ausente durante um ano. Ele gostava e foi o que mais lhe recomendara.
No caminho do esconderijo, a ratazana teve dois dos seus filhotes estraçalhados pelos gaviões atentos, e por sorte ela também não foi capturada.
A tia-avó engoliu o choro a mando do chefe do bando ditando ordens com uma escopeta apontada para sua cabeça.
Hora do recreio. Os rádios haviam sido desligados a pedido da diretora que não queria deixar a criançada traumatizada.
As cédulas espalhadas pela calçada davam pistas sobre o rombo que fizeram no cofre e nas finanças da instituição.
O bioquímico só pensava no filho que estava sendo gerado, só que não sabia ele que os restos do seu bastardo encontravam-se viajando dentro do esgotamento sanitário.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 30.11.2022 ˗ 23h03min
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