quarta-feira, 23 de novembro de 2022

SERÁ VERDADE? - Heraldo Lins

 


SERÁ VERDADE?  

As cascas ficaram em cima da mesa enquanto eu comia a polpa. Antes de sair, escutei a lixeira dizendo que o futuro de todos é o aterro sanitário.

Cheguei à rua e ouvi o silêncio sendo quebrado por alguns longínquos veículos. O bom de caminhar cedo é que não encontramos vagabundos.

O desânimo toma conta, mas o que me salva são os fantasmas empurrando-me para mais um desafio, no entanto, peço que saiam de perto para que a serotonina volte a fazer o efeito esperado.   

Olho para as cinco máquinas trabalhando no enrocamento da praia. Vai ser "engordada" e não mais precisarei monitorar as marés para saber que dia elas me darão permissão para pisar na areia.  

Ao longe, vejo um caminhante que anda com a cabeça pendendo para a frente. Um louco conhece outro, isso eu sei. Pelo jeito é um estrangeiro que se encantou com a paisagem, mas nada de cumprimentos. De início, achava que ele era doido mesmo, entretanto percebi que o doido sou eu, pois vejo loucura em todas as pessoas.

Ainda há pouco, eu vinha pensando no filósofo mendigo e cheguei à conclusão que não queria Diógenes sendo meu vizinho. Imagino o mau cheiro exalado por um homem que optou em não tomar banho nem em se limpar. Os livros não falam da “catinga” de Diógenes, mas, com certeza, fedia muito. 

Sobre Platão, já li que era um velho ranzinza e que inventou Sócrates apenas para dar vazão às suas impertinências.

Minhas divagações foram interrompidas por um homem magro passando a “mais de mil.”  Analisei o ritmo e percebi que não teria como competir. Se tentasse acompanhá-lo, iria me estazar. 

Um pouco mais adiante, ele parou. Ah, também cansa! pensei. Com mais alguns minutos, consegui ultrapassá-lo no ritmo da preguiça. Não podia irritá-lo correndo rápido, senão a camisa, que ele trazia amarrada na cabeça, voltaria a tremular com mais intensidade, e isso me perturbaria. Olhei para trás e o vi caminhando. Fraquejou! exclamei sem alarmar.

Entretenho-me em olhar as pegadas no chão, e quando "penso que não," uma princesa passa em disparada. Está com uma roupa colante por baixo do calção de corrida. Só me resta torcer para que ela canse. Cinco minutos, dez... percebo-a olhando para trás. Digo para minhas pernas: ela está cansando, e parar será a “próxima estação.” Aguentem firme que daqui a pouco estaremos na frente. O ego manda acelerar, todavia o coração, com apoio do pulmão, barra meu ímpeto. 

A mulher continua. Finalmente acertei a previsão: ela saca o celular conferindo quantos quilômetros fez a mais do que os participantes da maratona virtual. Falo "oi" no exato momento em que ela ergue os olhos aceitando a suposta derrota, intimamente, vanglorio-me mastigando a secura na boca. 

Lá vai um velho e o “outro” vem. Sempre os encontro com frequência. O que vai é empenado e o “outro” tem uma perna torta. Devem estar sendo forçados por recomendação médica. O suor escorre servindo para que eu passe a mão na testa disfarçando meu sorriso sarcástico: “perdeu, velho!”  

Vejo mais um concorrente próximo à escadaria. Roupa preta e boné branco. Vai longe e acho que não tenho condições nem de chegar perto. Continuo, devagar e sempre, com os olhos direcionados para os pés que empurram o chão, e essa manobra serve para ligar o automático. 

Levanto o olhar e percebo que, enquanto pensava na deusa, aproximo-me do homem de boné até ultrapassá-lo e me distanciar facilmente. No momento da perigosa ultrapassagem, notei que ele tentou reagir, todavia, desistiu.

Paro na escada de madeira que liga a areia à calçada. Subo a ladeira em direção ao apartamento. Abri a porta a tempo de escutar a conversa da lixeira com as cascas da melancia. Parece que ela só sabe dizer que todos irão para o aterro sanitário, e é assim que concluo mais uma caminhada sem sair de casa.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.11.2022 — 15h40min



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