ALÉM DA PROSA
Se tinha uma pedra no meio do caminho, o ideal seria escolher ir pelo atalho, mas não, eles encontraram outra maneira de tirá-la do meio.
Hoje em dia, até para ser pedra está difícil, e quando se tenta, surge logo alguém para dizer que saia, pois está atrapalhando. É bom lembrar que antes do caminho ser construído, a pedra já existia no mesmo lugar. O mais justo seria dizer que tinha um caminho no meio da pedra, e não o contrário.
Essa briga sempre existiu e está provado, por A+B, que toda vez que um caminho encontra uma pedra tenta logo destruí-la. Dizem que no porto há uma delas impedindo que os grandes navios trafeguem. A coitada foi se esconder no fundo do mar, mesmo assim, arranjaram um caminho para desmoralizá-la.
Por trás dessa pendenga, esconde-se uma poesia colonialista detectada no momento em que pés, pernas e braços surgiram para construir o caminho. Nesse caso, o caminho é quem é o intruso e por isso deve figurar como tal, mas não é o que acontece. Tudo funciona de acordo com os interesses do invasor que passa por cima de pau, pedra, e, dessa maneira, somos elevados ao seu nível quando lemos e escrevemos poesia.
O mesmo acontece com o tempo. Antes da humanidade surgir, o tempo já usava relógio, e hoje há pessoas que dizem: no meu tempo era assim. Apossaram-se dele igual ao caminho que se apossou da pedra trazendo-nos grandiosos prejuízos. Um deles é a busca incessante em procurarmos pedras com o intuito de medirmos quantos minutos gastamos em quebrá-las.
Caminhos, pedras e tempo sempre se encontraram nas encruzilhadas da vida, e foi nesses encontros que trouxemos o tempo para dentro de casa. A partir daí, passamos a competir com ele no trabalho, na escola, e assim, progressivamente, fomos nos transformando em jogadores de pedras em quem não sabe disso.
Cada amanhecer nos traz pedras enormes para serem lapidadas, quer se queira ou não. Agora, imaginemos o caminho e a pedra parados naquele mundão tenebroso. Um diz: saia do meu meio que eu preciso prosseguir. Ela responde de forma irônica: nam nam nim nam não... É, mas você está atrapalhando o meu fluxo, e não há como eu crescer com você fincada aí, responde o caminho com ar de frustrado. E quem mandou você vir esbarrar em mim? Faça um túnel ou um viaduto, mas me preserve. Eu sou bonita tanto em cima quanto embaixo de você, diz a pedra ficando mais dura em seus argumentos.
A discussão continuaria se alguém não interviesse dizendo que a pedra e o caminho nem existiam antes da poesia ser escrita. Foram criados pelo poeta que estava sem nenhuma pedra no sapato e resolveu trazer esse assunto para os debatedores brincarem eternamente.
Imaginemos, então, um mundo em que o artista habita. Se não houver discussão pesada tanto quanto uma imensa pedra, não tem graça. Na verdade, essa pedra precisa ser dinamitada, porém com essa mania de tudo ser proibido, removê-la da poesia é uma ação politicamente incorreta. O que fazer então se até no mundo da imaginação há os protetores de pedras? Deixemos ela ficar, dizem os estudiosos da literatura, e argumentam dizendo que sem ela eles jamais teriam conseguido o doutorado nesse granito.
Outro salta de lá dizendo que respeitem a pedra porque ela é um diamante, e a melhor forma de expandir o caminho é fazendo-o crescer para trás, consequentemente, o que se encontra no meio passa a ser o início. A poesia ficaria assim: tinha uma pedra no início do caminho... e a cada momento que o poema fosse recitado, o caminho se expandiria sem a preocupação de encontrar outra pedra.
Aí poderia haver inveja por parte da montanha em querer ficar no meio para se tornar também famosa. A solução seria chamar um teólogo para convencer a montanha de que ela já é bem-conhecida em outra literatura, onde se diz que a fé move montanhas. Tudo bem, responderia a montanha.
Para não aumentar o tempo de discussão, resolveram aceitar a sugestão, e assim, o que estava no meio passou a ficar no início, não havendo mais problemas de invasão territorial. A partir desse dia, a pedra e o caminho passaram a conviver na mais perfeita harmonia, porém ficou acordado que a antiga versão seria preservada apenas como material de consulta, tipo um museu da poesia.
Se alguém sentir saudades da pedra no meio do caminho, o melhor que tem que fazer é sair do meio porque a fila anda.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 01.07.2022 — 17:50
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