quinta-feira, 23 de junho de 2022

O PERIGO DE SE EXPRESSAR - Heraldo Lins

 


O PERIGO DE SE EXPRESSAR


O poder do blefe é tão forte que se alguém disser que está vendendo passagens para Marte, há pessoas prontas para comprar bilhetes.

Quero só ver a cara de quem chegar com vida por lá. Descer do foguete, olhar para aquele mundão de gelo e perguntar: onde fica a padaria? Não tem! Depois de quatro horas perguntando e só ouvindo o famoso "não tem", tentar, sem sucesso, voltar à terra e receber como resposta: "te vira!" E o almoço? Você mesmo pode se servir e é grátis. É só pegar aquelas pedrinhas de gelo, mastigá-las e engoli-las. Tudo bem! Diz o mais prevenido. Trouxe minha marmita descartável. É bom que você coma também o isopor porque aqui não existe lixão, responde o anfitrião.

Argumentos são elaborações que servem para enfeitar mentiras e produzir respostas a possíveis perguntas. No geral, uma mentira mãe vem acompanhada de várias outras com o intuito de tornar crível o que é incrível. No caso de viver em Marte, tudo será transferido "daqui pra lá," inclusive, os problemas. Já estou até imaginando as crianças serem alimentadas com o sonho de se tornarem Marcianos. O pai dirá que o filho morava no planeta vermelho e foi morto por descuido. Como assim? Pergunta o vizinho. Saiu, para passear fora da cúpula, sem usar capacete. 

Aqui na terra há desertos em que cabem milhares de cúpulas, e não consigo entender por que é necessário ir tão longe para sentir angústia gelada. O residente passará a vida inteira sem poder ir à praia e nem tomar cachaça em bodega. Para ser um marciano de sucesso, a pessoa terá que ingerir comprimidos de fogo contra congelamento, o que, no mínimo, será altamente desconfortável.

Se Marte receber moradores, depois de bem-adaptados, seus descendentes nos visitarão dizendo: como os terráqueos estão atrasados. Vocês ainda defecam? 

Não sei por que essa verdadeira loucura em correr para longe do sol, mas desconfio que é porque o astro-rei carrega, em sua bagagem, dentre tantos outros, a abelha, a formiga e, nosso maior inimigo, o rato. Lá longe esses bichos não existem, a não ser que algum assaltante leve um rato e utilize para praticar assaltos, como vi no Rio de Janeiro. Ele colocou o guabiru numa gaiola, entrou no ônibus e cobrou cinco reais de cada passageiro para não soltar o bicho. E gritava: olha o rato! 

Deve ser por isso que muitos querem fugir da terra. Seus vizinhos pobres não são nada agradáveis. Lá, os bilionários não irão encontrar ratos de rua, até por que se alguém inventar de ser um morador a céu aberto, em poucos minutos, transformar-se-á numa estátua pública.

Crer sempre foi a capacidade humana mais exercitada em todos os tempos, fato mais que comprovado quando se aceita que um pedaço de papel cédula valha mais do que uma refeição.

Acreditar que a mente vai empurrando as palavras pela página é fundamental para se tornar escritor, mas aceitar o argumento de que quem provoca a guerra são pessoas entediadas, já não é tão simples assim.

Há algoritmos que detectam a sua preferência sexual de acordo com os sites visitados e expressões faciais projetadas a cada imagem vista. Os magnatas na internet armazenam essa informação e, caso precisem acabar com a vida de um de seus inscritos, lançam mão desse expediente. Acho que é bom acreditar nisso.

Na escrita se exige maior concentração e cuidado para que o leitor não duvide do que está lendo. Depois que a dúvida rumina o quengo dos desconfiados, não há mais crédito para se ler um novo texto daquela autoria. 

Do mesmo jeito são as ideias absurdas. Se eu disser como vamos povoar Marte, ninguém acredita, mas se for o homem mais rico do mundo que disser, quase todos compartilham.

E para falar a verdade, tenho bastante cuidado em dizer que a ideia de morar em Marte é, simplesmente, incrível.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 23.06.2022 – 20:58



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”