quarta-feira, 22 de junho de 2022

BRAVA PACIENTE - Heraldo Lins

 


BRAVA PACIENTE


Ainda se encontra deitada... 

A mãe do marido acordava, como de costume, logo cedo. Essa prática adquirida na labuta do sítio, a deixara esperta e mal-humorada. 

Quem? Calma! Mal comecei a falar e você já me interrompe. 

O casal, formado pelo filho e nora, recebeu dona Euralma em seu apartamento enquanto se recuperava de uma mastectomia. 

Escutei ela levantar-se. Deve ter despertado devido à intensidade da sua voz. 

A esposa sempre falou alto, e acredito que se casaram porque ele viu nela um motivo para criticá-la ainda no noivado. 

O problema é que só você quer falar, e quando tento expressar algo você diz que causei algum mal com minha voz forte.

Ela sempre o enfrentou, inclusive, mandando-o aumentar o tom sussurrante de confessionarista.

Isso é discriminação social. Psiu! Ela está no banheiro. 

Do quarto separado com gesso, qualquer barulho é escutado. 

Agora você tem que ir fazer o café. Vá você! Ela só gosta do seu. Obrigada pelo elogio. Mas isso não é um elogio, é a pura verdade. Obrigada de novo!

Gasgria pode até ser barraqueira, mas a virtude de ser boa cozinheira ninguém pode tirar. Já trabalhou em hotel cinco estrelas, e hoje toma conta do restaurante na pousada do casal. 

Depois que sua mãe veio morar com a gente, pelo menos você percebeu meu valor, tornando-se mais romântico. Em plena seis horas da manhã, não vejo nada de romântico nisso, apenas trabalho, e muito. Vá!

Mesmo falando pelos cotovelos, ela o obedece, não sem antes questioná-lo. 

E você vai ficar deitado? Claro, não aguento ouvir quem já amanhece o dia falando igual a uma matraca. Vou falar da sua preguiça. Não faça isso! Mãe não gosta que você coloque defeitos em mim. Mas é a pura verdade, gostou? 

A esposa não perde a oportunidade de fazer graça, e isso o deixa desconfortável e, ao mesmo tempo, satisfeito pela descontração.

Dê-me um beijinho. Eu nem escovei os dentes ainda. Então vá escovar para me beijar. Estou com preguiça. Vou dizer a ela. Não! Depois eu te beijo com juros, pode ser? Humm... Tá bom!

A relação continua com “todo o gás”, mesmo depois que ela teve dois abortos. O terceiro vingou e está de férias na casa dos pais dela.

Por que está se deitando? Deixe ela sentir minha falta também. Mãe precisa se alimentar na hora certa. Se eu for agora, o que você me dá além de uma beijo?

Parece que Gasgria escolheu viver a vida como se fosse um infinito picadeiro. Não para nunca de mexer com o marido.

Ela já deu a descarga. Vá ajudá-la a se levantar do sanitário. Sua mãe pode se levanta sozinha, ainda mais depois que você instalou as barras de apoio. Se ela cair a culpa é sua. Vaso ruim não se quebra. Se ela ouvir você dizendo isso, ah! tenho até pena.

 A nora pode até perde a amiga, mas não perde a piada. Depois ela inventa uma desculpa, dá presente e tudo continua na maior paz. 

Gosto muito de minha sogra. É, mas lembre-se que mãe virava a cara quando você dava bom dia. Isso já passou, homem, e nem vá falar isso na frente dela para não dificultar a cicatrização, viu meu, carequinha! Tá certo dona fofona. Você é mais careca do que eu sou gorda. Agora seja! Se a comparação for feita no peso, ganho folgado. Basta eu colocar uma peruca de quinze quilos e mesmo ficando igual a um mamute, sou o vencedor. 

Não entendi de onde você tirou essa peruca de quinze quilos. Do seu peso em excesso. É, mas naquele show de stand up, o humorista fez piada com sua careca e não com meu excesso de fofura. Mas foi você quem me apontou para ele mexer comigo. Eu gosto das suas malcriações, não sabe disso!? Tive tanta raiva ouvindo sua gargalhada quando ele me chamou de aeroporto de pernilongos. Solicito permissão para aterrissar...! Meu aeroporto não recebe submarino, só avião mesmo. Aprendeu essa onde? Deixe de brincadeira e vá ajudar a minha mãe.

Aqui e acolá ele lembra uma presepada que ela preparou para deixá-lo numa saia justa. É um dos argumentos que utiliza tentando fazer com que ela diminua seu ímpeto brincalhão, até agora, sem bons resultados. 

Já escutei a teimosa batendo pela cozinha. O braço direito dela tem que permanecer sem pegar peso. Se você não for agora ela pode magoá-lo. Vá! Então, vamos nós dois. Tudo bem! Já perdi o restinho do sono mesmo!

Bom dia, mãe! Pensei que tinham morrido. Eu aqui com fome e vocês brigando. A senhora escutou? Eu escutei, os vizinhos, os astronautas, todos escutaram. Uma zuada danada daquela. Está vendo Gasgria, e eu disse que falasse baixo. Eu falei baixinho, só que dona Euralma estava com o ouvido colado na porta. Mas mãe, a senhora não perde esse costume. É mentira! Lá do banheiro se escuta tudo. Eu vou ter que encontrar e tapar o buraco que senhora fez na parede do meu quarto. Ei, mocinho! o quarto também é meu. Diga assim: na parede do quarto do casal. A discussão é sobre o buraco, e não sobre a posse do quarto. Tudo você polemiza. Aprendi com você. E eu aprendi com minha mãe. O que não presta, é culpa da mãe. Quando o filho tem virtudes, puxou ao pai. A senhora quer comer o quê? Merda! Você não sabe que é cuscuz, ovos, bolacha, queijo, mamão, leite, café e um pouquinho de... como é o nome daquele farelo de jumento? Granola, mamãe, a senhora sempre esquece. Eu chamo comer de jumento. Só tem gosto de capim seco. É que o médico passou para sua prisão de ventre. O bicho não está fazendo efeito não! Pois, ontem de madrugada eu só escutei as trovoadas. Deve ter sido ela. Eu mesma não, dona Euralma. Dormi a noite toda. Mas mente! Só ouvi foi a cama rangendo e você gritando "ai ai ai". Eita! Trasvaldo, sua mãe fica ouvindo tudo. Eu acordei com vocês fazendo sem-vergonhice. Sente-se ali que Gasgria vai preparar o café da senhora. E é bom mesmo, porque comprei tudo com meu dinheiro. Pronto dona Euralma, aqui está! Pensei que só ficaria pronto lá pra de noite. 

Hoje está chovendo bastante e dona Euralma está até de bem com a vida. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.06.2022 — 12:25




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