sexta-feira, 27 de maio de 2022

PROCEDIMENTO COMUM - Heraldo Lins

 


PROCEDIMENTO COMUM


Lavou as mãos diante daquele que era apontado como criminoso. O réu permanecia cabisbaixo demonstrando calma em frente à multidão sedenta de sangue. Estava correndo o mês da entressafra e muitos camponeses, esperando pelo crescimento da lavoura, chegavam à cidade para se inteirar das novidades. 

Envolvendo criminosos e carrascos, essas pendengas eram as que mais atraíam desocupados. Sem eira nem beira muitos ficavam esperando uma oportunidade para roubar as vestimentas daquele que seria executado. A multidão permanecia contida pelos guardas que, por sua vez, ambicionavam tirar a sorte para ver quem ficaria com as vestes de linho branco que o acusado usava. 

As pessoas acotovelavam-se tentando um ângulo melhor para reconhecer o criminoso. Pelo semblante do juiz, percebia-se que o ato de lavar as mãos era uma maneira de se livrar da responsabilidade pela vida de quem estava sendo julgado, e claro, tirar o grude das unhas. 

O julgador farejava, nessas aparições públicas, uma forma de se tornar popular, e, quem sabe, tomar o lugar dos seus superiores. Sem o menor sentimento de culpa, esbofeteava o preso enquanto ouvia gritos de morte por pauladas. 

Naquele tablado montado para esses espetáculos, quanto mais tempo o criminoso demorasse vivo, melhor seria para manter a população ocupada. Nessas aglomerações, os descarados aproveitavam para acochar as mulheres que ficavam assistindo. Um pouco fora do contexto, havia os vendedores gritando: amendoim e castanha, quem vai querer?  

Muitos espectadores eram vítimas de empurrões, e até um esfaqueamento ocorreu. Certa vez, estimulados pelo cheiro de desodorante vencido, aconteceu uma verdadeira baderna em que todos partiram para cima de todos e o pau cantou. Dedadas ocorreram nas mais diversas modalidade sem que se soubesse de onde partiam. 

Os bagunceiros organizavam suas próprias gangues e havia rivalidade para sumirem com as vestes valiosas. Geralmente eram vendidas no mercado central com o carimbo de sangue, sendo que agregava valor se o executado fosse conhecido. 

De repente, olhando para o juiz, o condenado cuspiu em seu rosto e riu desdenhosamente. Ao ver a cara do safado rindo, a multidão chegou a êxtase. Posicionando-se por trás do réu, o juiz sapecou-lhe um murro que o homem, de mãos amarradas, caiu de bruços. Sem maior cerimônia, levantou-se e começaram a jogar capoeira. Em cima do palco, chegaram os tocadores de pandeiro, atabaque e berimbau. Cantavam músicas africanas ao mesmo tempo que os dois rodopiavam com pernadas pra lá e pra cá durante horas. Resolveram descansar um pouco, e nesse ínterim, entrou em cena mais dois capoeiristas, pois o espetáculo não podia parar. 

Finalmente os guardas chegaram e logo chicotearam os capoeiristas que sumiram sem esperar por tempo pior. Apareceu, nessa hora, um mensageiro dizendo que terminassem logo com aquilo senão o chefão mandava prender todos. Caso não se comportasse, o acusado seria queimado vivo, disse-lhe o juiz a mando do imperador que os observava da torre do seu palácio. 

Voltou-se para o interrogatório perguntando o que fariam com o preso. Alguns gritavam morte, outros, esfola. O juiz, educadamente, perguntou se primeiro seria morte e depois esfola ou esfola e depois morte. 

Surgiu outro mensageiro dizendo que o imperador havia decidido pela degola. Pessoal, disse o juiz. Todos se calaram para ouvir a mensagem do imperador. O excelentíssimo senhor imperador resolveu que o criminoso será degolado. Rimou com esfolado, gritou um gaiato.

 Quem quer degolar o criminoso? Eu, disse um careca. Subiu os degraus e lhe foi perguntado qual o interesse em cortar a cabeça do acusado. Preciso fazer uma peruca, e os cabelos dele são compridos, dá certinho para o que eu quero. Dada a permissão, o carequinha executou os golpes de foice e foi embora com a cabeça dentro de um saco de algodão. Assim morreu Barrabás.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.05.2022 – 21:56




2 comentários:

  1. Muito bom, Heraldo. Se não foi assim, deveria ter sido! rsrsrsr - Gilberto Cardoso

    ResponderExcluir
  2. Pois é... Caim, Judas e Barrabás poderiam ser chamados de os três odiados pelos cristãos, mas temos que amá-los e perdoá-los...

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”