FORÇA ESTRANHA - Heraldo Lins

 FORÇA ESTRANHA

Ele precisa dormir um pouco para encontrar os pensamentos que o orientam. Ao dormir, as ideias vão surgindo como se fossem folhas em uma mata fechada. Seu mundo real é selado por uma crosta, por isso, Salazar, quando precisa pintar um novo quadro, visita aquela floresta de cores. 

Durante nossa conversa, percebi que a maioria dos quadros que embelezam o salão do restaurante são de figuras femininas. Algumas delas têm um lado masculino, com costeleta e cabelo curto. Perguntei-lhe. Sorriu explicando que no início da gestação todos somos homens e mulheres indefinidos, e só depois é que um dos sexos predomina. Foram quadros pintados com essa temática, dizia-me enquanto íamos para o escritório.

De lá fomos a uma grandiosa sala e saí encantado com a proposta de administrar a parte cultural da casa. O salão era separado das mesas e o objetivo era ser um local onde pudesse integrar os clientes, pós refeições. Fizemos algumas adaptações, dentre elas, um isolamento acústico, entretanto, precisei atender outros clientes e deixei o trabalho nas mãos de um assistente. 

Dois anos depois, passando pelas ilhas Maldivas,  encontrei Salazar em lua de mel. Sua deusa, motivo de grandes paixões, havia aceitado o pedido depois de um casamento fracassado. Lembro-me de tê-la visto retratada nos quadros que reinavam no salão nobre  

Regressamos juntos para Sri Lanka e de lá nos separamos. Ele ainda ia visitar outros países, disse-me, em reservado, que entre uma hospedagem e outra queria despertar o interesse em Liliane para substituir o assistente de palco.  

Eram sete horas da manhã quando ele me ligou noticiando que Liliane havia desaparecido. Já procurada em toda a área do hotel, Salazar percebeu um bilhete afixado no espelho do banheiro, onde, rabiscado com batom, Liliane despedia-se por alguns dias. 

Ao encontrar a casa da sua tia monja, ela apenas relatou que estava com um problema. O que lhe aflige? perguntou a tia dando-lhe um afetuoso abraço. Ficar presa à minha história. Se pelo menos eu vivesse sem que precisasse trazer minhas experiências junto, ficaria satisfeitíssima. Mas tudo que vivencio fica me acompanhando. Não tenho folga de mim mesma, e isso me chateia, disse ela sentando-se na borda da piscina. É, mas saiba que somos todos assim, respondeu a tia sentando-se também. O pensamento é movimento, por isso é cansativo pensar, e mais ainda, ignorá-lo. Se você quer fugir dessas lembranças que a persegue, observe o que vem à mente e esteja pronta para desprezá-las. Esforce-se para desviar a atenção, que conquistará o equilíbrio que tanto deseja. 

Três dias depois, Salazar estava em seu quarto quando viu Liliane chegar. Vinha feliz e renovada. Praticando o esquecimento orientado, Liliane já havia conseguido total controle em inibir o pensamento de que era um homem. 

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.05.2022 – 22:37