RECORTES POÉTICOS NA OBRA DE
GILBERTO CARDOSO - Trabalho acadêmico feito por Débora Fernanda para o curso de Artes Visuais
A
CRIANÇA E O URUBU
Cordel por Gilberto Cardoso dos Santos
Peço ao leitor do poema
Que mire a fotografia,
Razão de ser desse tema
Que ao cordel serve de guia.
Veja esta foto sombria,
No mundo inteiro espalhada.
Fotografia odiada
Por aquele que a tirou,
Que famosa se tornou
E foi muito premiada.
Na foto é apresentada
Uma criança morrendo.
Na cena aqui registrada,
Não há ninguém socorrendo.
O tempo vai transcorrendo
E a cena grita ao olhar.
Miserável é o lugar
E a condição sub humana
Onde a ave, soberana,
Espera se alimentar.
No olhar inexpressivo,
Claros prenúncios da morte.
O urubu, muito vivo,
Ali se demonstra forte.
Eis alguém entregue à sorte,
Melhor dizendo ao azar.
De nascer em um lugar
Onde reina o sofrimento
E o mais básico sustento
Não se consegue arranjar.
No entanto vemos a vida
Buscando sobrevivência.
O urubu quer comida,
E a criança resistência.
Trata-se de concorrência,
Vencerá quem for mais forte.
A criança espera a morte,
E o urubu que ela morra.
Ninguém há que a socorra,
Não há olhar que suporte.
[...]
Com ossos quase à mostra
E o corpinho em convulsão
Perante a morte se prostra
Num ato de rendição.
Falta um pedaço de pão,
Um copo d’água, uma ajuda,
Porém na paisagem muda
Não se vê qualquer saída.
Aos poucos se esvai a vida
Porque não há quem acuda.
Ao redor se vê capim
Ressequido e destroçado,
E o verde perto do fim
Dum mato pisoteado,
Bem escasso e amarelado,
Que atapeta o chão sedento.
O sol afugenta o vento,
Na desgraça a calmaria,
E a criança na agonia
Por falta de alimento.
Mais além se vê as casas,
Refúgios mal construídos,
Onde o amor ganhou asas
E gerou filhos queridos.
Escudos de palha erguidos
Contra o sol incandescente.
Em meio à seca inclemente,
A criança se debate,
Enquanto a morte a abate
Sem uma mãe que acalente.
Ao longe vê-se o verdor
De um resistente arvoredo,
Minorando o dissabor
Da vida que se vai cedo.
Nesse ambiente de medo,
Que à vista humana desola,
Crianças não vão à escola,
Só tentam sobreviver.
Pouco depois de nascer
Vem a morte e as esfola.
A fome fez raio X,
Deu mostras do esqueleto.
Desenhou pardo matiz
No frágil corpinho preto.
A morte faz um dueto
Com o agouro do urubu.
E a ave meio jururu,
Se encolhe em sua penugem,
Ao som de vozes que rugem
Querendo o cadáver nu.
[...]
Enquanto a comida abunda
Em deslumbrantes mansões,
Aqui a fome profunda
Vai ceifando multidões.
Sob o olhar das nações,
Deslumbradas com o eu,
Gente que nunca sofreu,
Com seus corpos bem nutridos,
Filosofam comovidos
Num bom sofá europeu.
[...]
A poesia pode nos mostrar o mundo de um jeito mais bonito. Ao mesmo tempo, pode ser uma lente que nos ajuda a enxergar um lado do mundo - e de nós mesmos - que evitamos encarar de frente. Assim como na fotografia, o recorte é que determina a forma que a realidade será apresentada. Neste trabalho optamos por abordar este segundo aspecto, nos apoiando no trabalho do cordelista Gilberto Cardoso, que traz este tipo de temática em diversas obras de sua autoria. No cordel a Criança e o Urubu, ele propõe uma reflexão acerca de uma fotografia mundialmente famosa, em que um abutre observa uma criança desnutrida em posição fetal. O autor começa descrevendo a imagem e, aos poucos, vai expandindo o objeto de sua reflexão, até chegar em um ponto que coloca a natureza humana em evidência. Ele utiliza versos de fácil compreensão que, somados à musicalidade intrínseca ao cordel, guiam o leitor na sua linha de pensamento.
Em um primeiro momento, a poesia é centrada nos detalhes da fotografia que a acompanha, potencializando o sentimento que a mesma desperta, causado não pela imagem em si, mas pela constatação do que ela representa: uma realidade chocante com a qual muitos de nós não estamos habituados a lidar.
Aqui o recorte da fotografia é colocado em evidência - é onde a reflexão do
poeta começa. Ao descrever a imagem, ele constrói sua percepção acerca da mesma
e dá materialidade à situação ali registrada a cada nova estrofe. Quando a
descrição acaba, ele se dá conta do contraste das realidades dos que vivem aquela
situação e dos que refletem sobre ela:
“Enquanto a comida abunda
Em deslumbrantes mansões,
Aqui a fome profunda
Vai ceifando multidões.
Sob o olhar das nações,
Deslumbradas com o eu,
Gente que nunca sofreu,
Com seus corpos bem nutridos,
Filosofam comovidos
Num bom sofá europeu.”
Em seguida, o
poeta se volta para o contexto que acompanha a fotografia em si - a fama, o
autor, o que levou o autor a registrar aquele momento e o que a fotografia o trouxe. A comoção que a
fotografia causou pareceu beneficiar diversas pessoas além dele próprio,
mas a lembrança daquela realidade, do que
ele
viu, foi mais forte do que a gratificação por ter conseguido mostrá-la pro
resto do mundo. Até que
ponto é possível ser feliz com a realização de um objetivo, quando sabemos que só foi possível
às custas do sofrimento de outra pessoa? Até que ponto a satisfação consegue ser
maior do que a culpa? Certamente
a notoriedade que a imagem ganhou teve influência na dimensão do sentimento que Kevin
teve em relação à própria obra. As pessoas podem ser cruéis quando escondidas atrás de
uma tela, é fácil condenar alguém quando
não estamos cara a cara. Isso levanta outro questionamento: a crueldade faz parte da natureza humana? O cordel A
Criança e o Urubu é a materialização de um processo de pesquisa e reflexão acerca da
fotografia de Kevin. Esse tom filosófico é recorrente em seus trabalhos. Grande parte de
suas produções coloca algum aspecto da sociedade
ou natureza humana em evidência e discorre sobre o tema de forma educativa. Alguns exemplos são A
Verdade e a Mentira, no qual aborda a
forma como as pessoas
tendem a lidar com uma verdade desagradável; A
Caverna de Platão,
que reconta a famosa alegoria da caverna acerca do conhecimento absoluto; A
Serpente e o Vagalume, que trabalha a
temática da inveja; entre outras
obras de seu livro Fábulas e Contos em
Cordel. Com
isso, percebemos que as obras do poeta não só desenvolvem seu pensamento filosófico, como carregam
uma clara intenção de educar o leitor, pela
forma que compartilha suas deduções.
Em
A Arte Idealizada (em anexo) o
autor constrói um ideal de arte que, além
de
apresentar um potencial educativo, contribui para a evolução do indivíduo e da sociedade. Para ele, a arte
genuína transforma o ser, o faz transcender, enquanto a arte alienada muitas
vezes não passa de uma ferramenta de manipulação
utilizada por aqueles que detém o poder:
“Não falo do pão e circo
Das migalhas do poder
Cujo fim é alienar
E às multidões entreter
Mas da arte genuína
Que ao bem maior se destina
Transformando o nosso ser.
Sem a camisa de força
E o Gardenal da censura
Deve a arte circular
Para pôr fim à loucura
De quem tem olhar mesquinho
E põe pedras no caminho
Dos que semeiam cultura.
Dois remos do mesmo barco:
A arte e a educação
Têm papel fundamental
Na humana evolução
Dão reforço à estrutura
Que fundamenta a cultura
Arte é mais que diversão!”
No início do poema, ele diz que a arte é uma expressão do eu,
necessária ao indivíduo, mas que precisa evoluir e passar a ser, cada vez mais,
uma expressão do nós. Como a arte também engloba a poesia, podemos dizer
que a poesia ideal, segundo a visão do autor, é aquela que serve a um propósito maior, de
libertação do indivíduo, e que causa algum impacto a nível coletivo. No
entanto, na última estrofe ele reconhece que este ideal de arte é algo que, na
prática, nunca temos.
Tendo isso em mente, podemos concluir que a poesia de Gilberto Cardoso é a
materialização de suas reflexões, que caminham por variadas temáticas, e que busca
edificar àquele que a lê.
A ARTE IDEALIZADA
por Gilberto Cardoso dos Santos
Arte é a expressão do EU
Ao indivíduo dá voz
Rompe o incômodo silêncio
Da insatisfação atroz
Mas precisa evoluir
Cada vez mais emergir
Como a expressão do NÓS.
A arte em si satisfaz
A quem lhe dá expressão
Mas para muitos artistas
Também é seu ganha-pão
Dons e negócios à parte
De incentivos vive a arte
Pois nobre é a sua missão.
[...]
A arte em si é inútil
Mas uma necessidade
Pois precisamos de fugas
Do excesso de utilidade
Sem arte se morre à míngua
E empobrecemos a língua
Sem a sua liberdade.
Todo artista é uma ostra
E a arte o arenoso grão
Que é convertido em pérola
Trazendo satisfação
Em inexplicável magia
Da dor se faz poesia
Cerra as grades da prisão.
Não falo do pão e circo
Das migalhas do poder
Cujo fim é alienar
E às multidões entreter
Mas da arte genuína
Que ao bem maior se destina
Transformando o nosso ser.
Sem a camisa de força
E o Gardenal da censura
Deve a arte circular
Para pôr fim à loucura
De quem tem olhar mesquinho
E põe pedras no caminho
Dos que semeiam cultura.
Dois remos do mesmo barco:
A arte e a educação
Têm papel fundamental
Na humana evolução
Dão reforço à estrutura
Que fundamenta a cultura
Arte é mais que diversão!
Nem só de pão vive o homem
Mas da palavra poética
Da marcha, também da dança
Do canto e da dialética
Ao homem traz transcendência
Quando exprime a consciência
Alicerçada na ética.
Jamais a mão invisível
Do Mercado sorrateira
Irá se abrir livremente
Para a arte sem barreira
Mas dedos entrelaçados
Numa ciranda irmanados
Farão arte verdadeira.
[...]
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