segunda-feira, 1 de novembro de 2021

O CARA DE SORTE - Heraldo Lins

 



O CARA DE SORTE


Acorda desorientado. Olha a hora e percebe que já está atrasado. O celular deixou de funcionar por isso não despertou uma hora antes. Tenta se arrumar rápido para não chegar fora do horário ao trabalho. 

Quando vai escovar os dentes a escova quebra e ele precisa colocar o creme dental no dedo. 

O café terá que ser apenas tapioca com queijo. Não tem tempo para preparar mungunzá ou cuscuz com carne moída, só que a goma foi consumida na noite anterior pela filha que chegou tarde. 

E agora? Procura ovos. No manuseio, um deles cai. Contenta-se com o único que restou. Precisa cozinhá-lo, mas o gás acabou. Vai até o micro-ondas e coloca para o cozimento. 

Abre a garrafa de leite vindo do sítio, mas sua mulher esqueceu de fervê-lo e estragou. Joga o leite estragado na pia colocando água para descer mais rápido. O cano entupiu e fica com a pia cheia de água misturada com leite podre. Tem que ser rápido para fazê-lo descer senão a mulher acorda e vai brigar. Começa a movimentar o desentupidor, mas o cabo larga da parte plástica e cai em cima de umas panelas. A mulher pergunta o que é que está acontecendo na cozinha. Ele diz para ela ir dormir. 

_ Nada não, vá dormir. 

Procura os sapatos. O cachorro mastigou um deles. Ele precisa comer algo, menos os sapatos. A fome tem que ser aliviada. Corta o queijo e mistura com o único ovo restante. Quando está terminando de preparar a mistura a faca quase leva a ponta do seu dedo. Jorra sangue. Ele mete o dedo sangrando na boca, mas já sujou a camisa branca. Vai ter que entrar no quarto novamente para buscar uma sem mancha. A mulher pergunta o que é. Manda permanecer dormindo: 

_ Permaneça dormindo. 

Ele está suando e com vontade de sair de casa, mas sem camisa não fica bem chegar ao trabalho. 

Aproveita e pega o tênis. Ao calçá-lo sente uma picada de inseto. Há um escorpião dentro do calçado. Seu pé começa a inchar. Procura o pente e não encontra. Vai ser o jeito ir despenteado com o pé inchado e doendo. 

Seu dedo da mão precisa parar de sangrar. Vai até a gaveta de baixo e encontra o kit primeiros socorros. Estancou o sangue, mas não tem tempo para dar atenção às dores. Está muito ocupado tentando chegar na hora. 

Ao comer o ovo queima a língua... droga! porque não teve cuidado. Cospe fora e corre para pegar água gelada. Derrama o líquido no copo de vidro que escorrega e quebra. A mulher já está sentada na cama:

 _Meu Deus, o que é isso? 

_Vá dormir. 

_Como vá dormir se você não deixa. 

Sai de casa sem comer e todo desarrumado. Percebe que está com os pés descalços. Volta para calçar nem que seja uma sandália. Consegue sair com sandália de dedo, as únicas que estão inteiras. Estavam inteiras, mas na porta do elevador ele bate com o pé partindo a correia. Fica com apenas uma. Ainda dá tempo voltar para o apartamento. Volta e sai com uma sandália num pé e o sapato que o cachorro não roeu, no outro. 

Volta novamente para colocar um suposto curativo no dedão para fingir que está sem poder calçar sapato.

A pasta com os documentos? Volta e pega. Ao sair de casa a correia da bolsa se parte. Leva a bolsa debaixo do braço, sem a correia. Parece que hoje é o dia das correias. 

_ Ah! A chave do carro. Cadê a chave? 

Encontra. Sai e deixa a porta aberta. A mulher grita:

_ Feche! Quer que os vizinhos me vejam nua?  

O filho menor já está no corredor jogando bola. Quando vai entrando no elevador o menino dá um chute que a bola quebra os seus óculos. Vai assim mesmo. Quando chegar lá consertará com fita adesiva. 

Desce para a garagem. O carro está estacionado. Ainda bem que ninguém pegou emprestado. Antes de sair tem o costume de rodear o carro. Droga, o pneu baixou. Corre para o porta-malas. Esqueceu de consertar o pneu de estepe. Está sem condições de ir para o trabalho de carro. Pensa no taxi. Não tem costume de chamar taxi. Qual o número? O porteiro não sabe e nem ele havia instalado o aplicativo. 

Sai para a rua em busca de uma carona. Os vizinhos o conhecem. O primeiro carro que passa ele é atendido. Sou um cara de sorte, pensa enquanto entra no veículo. É muito conhecido na vizinhança, mas não conhece ninguém dentro do veículo. O carro sai em disparada. Está refém dos bandidos. A polícia consegue encostar e metralha o carro. Ele se abaixa. O motorista perde o controle e bate num poste. Só ele com vida. Ainda bem.

Sai com as mãos para o alto. O poste em que o carro bateu vem abaixo deixando-o sem poder movimentar as pernas. Depois de algemado entra na viatura sem chances de mostrar sua identidade. Sua bolsa com os documentos ficou dentro do carro que explodiu assim que ele saiu. Ao chegar à delegacia há muitos fotógrafos para registrar a história de o assaltante que não morreu. Algemado com as mãos para trás não consegue tirar a máscara. Fica preso por alguns minutos. As filmagens provam que ele era ele e não um criminoso do bando. É solto e pede carona aos policiais para deixá-lo no trabalho.

O conhecido chega cumprimentando todos com uma boa tarde como se nada de anormal houvesse acontecido.


Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 25/10/2021 – 18:07



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