O IDEAL PASSOU LONGE
O aluguel de aleijados para a mendicância é normal. Eu tive essa sorte. Nasci com uma atrofia na coluna que nem consigo andar. Vivo viajando dentro de uma carroça pedindo esmola. Fui programado para não falar, e hoje permaneço em silêncio a maior parte do tempo. Sou levado de cidade em cidade sendo mostrado como um animal de zoológico. No caminho posso tomar café e olhar debaixo de saias. No meu ângulo dá para ver quase tudo.
Já tentaram me comprar, mas meu pai não me vendeu. Só consigo manipular o dedo polegar e o indicador usado com frequência para segurar as ofertas que guardo em uma bolsa circundando onde deveria ser o pescoço. Minha cabeça é colada com o tórax. Minhas pernas finas e sem força servem para sujarem-se na defecação. O meu passatempo é pedir esmola. Como minha família se sustenta com minhas arrecadações, passo o dia e a noite fazendo isso.
Em casa vejo os meus familiares degustando o frango conseguido com minhas deformações. Depois vão jogar bola. Fico observando como é bom levar a cabeça sobre duas pernas. Eu levo a minha na carroça, ou melhor, levam para mim. No dia em que não conseguimos muitas doações fico trancado num quarto escuro como castigo.
O meu pai quando bebe me coloca dentro d’água para me ver subir e descer na tina. Sou indefeso para correr. Até que nado bem, mas ele empurra minha cabeça. Nas festas de final de ano ficamos nos semáforos. Nessa época as pessoas têm medo de terminarem o ano sem terem feito uma boa ação, então, doam um pouco mais.
Não quero passar a imagem que minha vida é ruim. Esse é meu trabalho e não preciso de muito esforço para desempenhá-lo. Os outro fazem por mim. Já nasci pronto para a piedade. Meu sonho é ver um filme no cinema. Dizem que lá é bem confortável. Mas não posso ter esses sonhos. Nem sei se poderia entrar, mas se pudesse e meu dinheiro desse, deixaria muitas pessoas desconfortáveis na sala de projeções. Ninguém aceita um deformado por perto.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 12/05/2021 – 07:25
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”