sábado, 15 de maio de 2021

OS POLIDORES DE IDEIAS - Heraldo Lins

 


OS POLIDORES DE IDEIAS


Apesar de as palavras irem descendo quando se lê, elas são o alicerce de um texto. Aqui não há força da gravidade, mas precisam estarem bem amarradas para não desabarem antes que o raciocínio seja concluído. Os demolidores são os leitores que abandonam a leitura antes do final. Eu, particularmente, sou um grande demolidor. Mas há textos que eu abandono e no outro dia volto a eles. Parece que há um sensor interno na gente que manda voltar. Algo especial no raciocínio de quem escreve que toca o leitor. 


Aconteceu quando comecei a ler Grande Sertão Veredas. Por três vezes, antes da vigésima página, desisti. Recentemente um amigo confessou-me que está acontecendo o mesmo com ele. Fiquei mais intrigado. Será se João Guimarães Rosa fez isso de propósito? Se fez, realmente é um gênio. Saber manusear as palavras para causar reações premeditadas no leitor, é o mesmo que cozinhar sabendo como estimular a salivação. 


Outro escritor que manipulou os temperos das palavras foi José Saramago. Ensaio sobre a cegueira causou-me desconforto. As batidas cardíacas aumentaram quando adentrei naquela selva de palavras. Fui tomado por uma sensação de asco. Minha reação foi praguejar sem saber se ria ou chorava. Joguei por várias vezes o livro no chão e me distanciei dele. Tomei água visando fugir daquelas imagens oriundas da leitura. Queria que o mundo todo visse aquilo. Tão real e sem sensacionalismo. Apenas natural como dormir. Uma amiga disse-me que é o encontro do leitor consigo. Não se suporta as mazelas próprias do ser humano habitando em nós. Eis a origem dessas sensações. 


Os escritores, acima referidos, foram mestres nisso. Pacientemente, João passou sete anos revisando sua obra-prima antes de publicá-la. Criou palavras que nossos dicionários não dispunham para expressar o que desejava. 


José desprendeu a maior parte do tempo em construir amarras, inicialmente enfadonhas, visando mostrar ao leitor o mesmo sacrifício que teve ao criar. Disse que não queria leitores fáceis. Quem quisesse desistir que desistisse, mas seus textos são duros como as ideias que precisam valer o gasto em registrá-las.


Miguel de Cervantes lutou contra os turcos, mas disse que suas maiores lutas foram com as palavras. Na prisão, sentindo fome, frio e sede começou a escrever Dom Quixote de La Mancha. Será preciso sofrer para escrever bonito? Se fosse assim, bastaria pular dentro de um forno de olaria. Mas acredito que repertório, imaginação e persistência são alguns dos ingredientes necessários para tal proeza. 


Enquanto não chega tudo isso para mim, fico contente com o que está ao alcance dos meus cansados neurônios: o superficial.     

     


Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Santa Cruz/RN, 20/03/2021 – 12:31

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